"Um Profeta" | © Atalanta Filmes

Cannes em Casa | Um Profeta (2009)

Jacques Audiard, respeitado autor do cinema francês, apresentou o seu novo filme no Festival de Cannes. Esperamos ansiosos pela chegada de “Les Olympiades, Paris 13e” às salas portuguesas. Entretanto, saciamos a nossa fome cinematográfica recordando um dos melhores títulos na filmografia passada do realizador. “Um Profeta” também passou em Cannes, onde ganhou o Grande Prémio do Júri, coloquialmente assumido como a honra do segundo lugar na competição. Mais tarde, iria varrer os prémios César, com nove vitórias, e até foi indicado para o Óscar de Melhor Filme Internacional.

Ao longo dos anos, Jacques Audiard tem vindo a focar muito do seu cinema nos marginalizados da sociedade francesa. Apoiando-se ocasionalmente nos códigos de género, do filme de gangsters e drama criminal, ele conta histórias de pessoas a viver no limiar da legalidade. São vidas cheias de ansiedade, de violência que é tanto física como psicológica. “Um Profeta” segue o mesmo modelo, relatando um conto que já vimos representado uma e outra vez ao longo da história. Um jovem pobre acaba na cadeia, onde encontra um mentor mais velho e cheio de experiência. Corrompido pela influência desse patriarca autoritário, o herói acaba ele mesmo por se tornar num senhor do crime, no mesmo tipo de monstro que em tempos lhe metia medo.

Ou seja, “Um Profeta” não ganha pontos por criatividade. Neste enredo há pouca inovação. O que brilha é o modo como Audiard traduz a história para cinema, os detalhes que decide reforçar e os elementos políticos e espirituais que ganham maior relevo. Trata-se daquele tipo de cinema que triunfa pela sua especificidade ao invés da universalidade temática. Neste caso, há todo um fantasma do colonialismo francês a assombrar a fita, cicatrizes argelinas da guerra e de uma instável assimilação de imigrantes árabes na sociedade francesa. Até o mentor neste cenário se afirma como um forasteiro na França continental, um Corso, alguém que as ordens sociais rejeitaram em tempos imemoriais.

um profeta cannes em casa
© Atalanta Filmes

Interpretado pelo formidável Tahar Rahim, Malik El Djebena é o nosso protagonista insuspeito, alguém habituado ao abuso racista de todas as direções. Tanto é que, mesmo quando é alvo de chacota pela parte da envelhecida máfia corsa, o jovem mantem-se impávido, sempre com uma máscara estoica a esconder raivas borbulhantes. Há tanta confusão juvenil no seu semblante como uma sombra de astúcia, um brilho de ambição. Vê-lo negociar entre fações árabes e da Córsega é ver um novo mestre emergir no ambiente prisional. Gradualmente, também vemos como seus valores vão erodindo, quais falésias rochosas sob o fustigar de ondas. De vez em quando, um novo ato lá nos surpreende, recordando de até quão longe Malik já foi para sobreviver.

Rahim tem aqui a performance de uma vida, uma série de transformações subtis que desenha um arco estonteante. Nas mãos dele, “Um Profeta” afirma-se como um dos melhores estudos de personagem do cinema gálico atual. Sentimos estar sempre a testemunhar o pensamento de Malik, suas flutuações de sentimento e desejos reprimidos, a vontade abafada de defender o orgulho seguida de pequenas explosões de agressão, quiçá o vacilar da lealdade, o levantar da culpa. É um desempenho tão visceral quanto astuto, tão exímio ao nível da fisicalidade como da reação verbosa. Assim sendo, os afazeres de esconder uma lâmina na boca conseguem ser tão poderosos como o diálogo espetral com vítimas antigas.

Lê Também:   A Volta ao Mundo em 80 Filmes

Melhor que isso é modo como Rahim consegue suster a humanidade de Malik, mesmo quando o argumento lhe justapõe leituras simbólicas por cima. Essa dimensão é especialmente notável nas interações do aprendiz criminoso e seu mentor. Niels Arestrup interpreta o velho César Luciani com menos intensidade que o seu colega de origem argelina, definindo o homem mais como uma ideia do que como uma pessoa. O tirano grisalho representa uma França ossificada pela tradição, pelos bons costumes e preceitos preconceituosos. Ele representa uma nação a morrer devido à incapacidade de seguir em frente, mas que, apesar disso, ainda consegue deter o poder da corrupção moral. A sua influência sobre o Malik de Tahar Rahim é tanto uma relação entre personagens como uma sinédoque política.

São os imigrantes que vêm revitalizar um sistema à beira da morte, inovando, mas sendo também eles consumidos pelos vícios violentos da antiga classe regente. Há aqui uma simbiose feita em prol da sobrevivência, um pacto demónico que acaba por resultar na destruição mútua do ponto de vista espiritual, moral, humano. Audiard assim torna a prisão em microcosmos de França, um espelho distorcido que nos revela os cismas sociais que presentemente assolam a nação europeia. Mais impressionante ainda é a facilidade com que o realizador evita o maniqueísmo do comentário panfletário. Por muito que Arestrup tombe para a simbologia, “Um Profeta” jamais se reduz a um sermão.

um profeta cannes em casa
© Atalanta Filmes

Parte desse feito devém do cuidado que Audiard teve em representar a autenticidade da vida prisional, chegando mesmo a contratar ex-presidiários como consultores no filme. Detalhes corriqueiros do dia-a-dia são tão importantes como as técnicas usadas para criar armas brancas através dos poucos objetos disponíveis. Há também uma demarcada resistência à estruturação dramática. Os acontecimentos em “Um Profeta” jamais parecem regidos pelas regras do filme de gangster, mesmo que a conceção de cenas individuais deva muito ao subgénero. Ao invés, Audiard expande o realismo visceral para englobar os próprios ritmos da história, desenhando um edifício cinematográfico que é feito de espicaçares de violência em estudada alternância com longas passagens em que nada acontece.

É monótono até que não é. Assim, quando a rotina plácida se quebra, sentimos o impacto dessa violação rítmica ainda mais. Devido a tais mestrias da montagem e do texto, Audiard consegue fazer com que “Um Profeta” jamais aborreça, pois até a inação se suja com a ânsia de uma audiência temerosa. Estamos sempre à espera de mais um acontecimento quebrante, de mais uma morte hedionda, mais um degrau na descida de Malik até ao inferno. Da paranoia floresce um grande filme, realismo elevado ao pesadelo, aquele tipo de trabalho em que todos os elementos são roldanas num mecanismo bem oleado. Audiard já realizou obras mais ambiciosas e aclamadas, Rahim já foi mais premiado, mas “Um Profeta permanece a máxima obra-prima na carreira dos dois cineastas. Uma salva de palmas para os mestres do cinema!

“Um Profeta” pode ser encontrado na Apple iTunes e na FILMIN. Nesta última, poderás ainda encontrar outras obras de Jacques Audiard, incluindo “Dheepan”, com que o realizador ganhou a Palme d’Or de 2015.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *