"Velvet Goldmine" | © Goldwyn Films

Cannes em Casa | Velvet Goldmine (1998)

Todd Haynes volta a dividir opiniões com o seu “May December,” sua obra mais recente que acaba de passar no Festival de Cannes. Logo veremos se o melodrama com Natalie Portman e Julianne Moore ganha prémios, mas, para a minissérie Cannes em Casa, vamos perscrutar o triunfo passado do cineasta. Neste caso, recordamos a primeira fita que Haynes levou à Croisette, “Velvet Goldmine.” Essa alucinação de glam rock competiu pela Palme d’Or em 1998, mas saiu da festa só com uma honra para Melhor Contribuição Artística. Mais tarde, viria a sacar uma nomeação para os Óscares graças aos brilhantes figurinos criados por Sandy Powell.

Na evolução cinematográfica de Todd Haynes, muitos são aqueles que se esquecem de considerar as curtas assinadas pelo realizador antes da sua estreia no panorama da longa-metragem. Só que, para melhor entender o contexto em que “Velvet Goldmine” apareceu, há que se fazer isso mesmo, apreciando dois títulos em particular. Falamos do polémico “Superstar: The Karen Carpenter Story” e “Dottie Gets Spanked.” O primeiro foi uma espécie de biopic atravessada por intenções ensaístas, dramatizando a tragédia do ídolo musical através de bonecas Barbies. Essa escolha estilística viria a repetir-se numa sequência singular de “Velvet Goldmine.”

Contudo, o que realmente interessa aqui será o exercício de exploração sobre a vida da celebridade, dissecando iconografias e histórias de tabloides num tenor que tanto tem de ironia camp como de sinceridade sentimental. No mesmo gesto, Haynes critica a sensação dos media e celebra os seus astros, análise e aplausos feitos num, com travos de artifício brechtiano para complicar o engenho. “Dottie Gets Spanked” dá continuação à pesquisa sobre ícones, mas dá-lhe um trejeito muito pessoal e muito queer. De repente, deparamo-nos com o fenómeno da fandom problematizado enquanto elemento identitário.

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© Goldwyn Films

Do solo fértil configurado por essas curtas emerge a flor de “Velvet Goldmine,” um tratado do Novo Cinema Queer dos anos 90 em máximo fulgor estilístico, cantando o fado do glam rock na mesma medida que reflete sobre suas maiores figuras. Em certa medida, poder-se-ia classificar o filme como irmão espiritual de “Superstar,” com as lições aprendidas no primeiro projeto dando aso a uma abordagem mais oblíqua. Depois de o irmão de Karen Carpenter ter efetivamente banido o trabalho de Haynes através de ação judicial, o cineasta não voltaria a cometer o erro da biografia não autorizada. Por isso mesmo, sua obra-prima de 1998 é e não é sobre David Bowie.

Ou melhor, trata-se de uma meditação sobre o conceito de Bowie, suas personas e mitologia tornadas realidade material num universo algures entre a fantasia e nosso real. Aqui, ele não será David Robert Jones reinventado, mas sim uma personagem original chamada Brian Slade. Tal como Bowie, ele terá o percurso de um camaleão, Maxwell Demon sua versão de Ziggy Stardust. Só que, ao contrário da pessoa de carne e osso, esta personagem vai além dos limites da natureza, a morte um embuste ou um processo de transformação. Para Bowie, nova persona era novo figurino e história musical. Para a criação de Haynes, nova persona é nova vida.

 

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De facto, todo o glam rock se torna numa experiência metafísica, as estrelas feitas deuses metamorfóticos vivendo entre os mundanos mortais. Mas o cineasta jamais tenta contar o conto da perspetiva dessas criaturas pois, como nós, nunca ele foi um deus. Contudo, foi um fã, e é precisamente essa a condição salientada pelo nosso guia dentro do universo de “Velvet Goldmine.” Ele é Arthur, um jornalista tristonho numa Grã-Bretanha de 1984 onde o Thatcherismo e o Reaganismo do outro lado do Atlântico formularam um pesadelo tão cinzento como aquele que Orwell escreveu. As especificidades não estão lá, mas sente-se a opressão nos ossos.

É a força heteronormativa de uma sociedade conservadora a forçar o homem queer de volta ao armário, até que um trabalho exige uma nova confrontação com essa identidade. Qual “Citizen Kane” coberto de purpurinas, “Velvet Goldmine” vai-se contando através de entrevistas levadas a cabo pelo repórter, buscando a verdade sobre alguém a quem a verdade é inimiga mortal. Assim vamos conhecendo Slade através do olhar alheio, memórias de outros filtrados pela imaginação do fã, de modo a que as várias camadas de falsidade constroem um palimpsesto. Ou será um caleidoscópio? Certamente o filme parece transformar-se em jeito prismático.

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© Goldwyn Films

Aforismos de Oscar Wilde, composições de Brian Eno, figurinos referenciais, técnicas do teatro Barroco, História queer, Shakespeare televisivo e tanto mais – tudo cabe em “Velvet Goldmine” e, por milagre, o caos fica à porta. Tal proeza evidencia a mestria de Todd Haynes enquanto realizador e maestro numa orquestra de forças criativas tão singulares quanto coloridas. Vê-se o génio no modo como a fotografia de Maryse Alberti varia entre impressionismos doidos e a visceralidade do filme-concerto, ou no circo mutante que Powell constrói com seus desenhos. Vê-se na cenografia e na maquilhagem espampanantes, na banda-sonora imortal e na elevação do corriqueiro ao extraordinário – ora seja cena de canção, de sexo, euforia ou desespero.

Mas também há que laurear os atores que pegam no texto de Haynes e o fazem singrar. Jonathan Rhys-Meyers nunca foi tão bom como no papel quimérico de Brian Slade, enquanto Ewan Mcgregor impressiona com a vulnerabilidade de um Lou Reed misturado de Iggy Pop que, no fim de tudo, será um Kurt Cobain com os olhos cheios de melancolia. Toni Collette é o artifício desavergonhado em forma de pessoa quando aparece em flashbacks. No tempo presente, no entanto, há cinismo e exaustão que se sentem no âmago. Muitos outros nomes se pavoneiam fantásticos neste elenco, mas o aplauso derradeiro vai para Christian Bale como Arthur.

Nele perdura a tese de “Dottie Gets Spanked” reformatada e explodida, um hino ao poder da música e da celebridade enquanto espelhos que nos revelam o eu, que nos despertam desejos e nos conferem formas novas de os articular. Quando num telhado ele chega ao êxtase, também nós sentimos o fulgor. Quando a esperança morre no seu coração, a dor finca-se no espetador. Quando o desapontamento formula novo conhecimento e dá aso a novas liberdades, voamos ao seu lado. De todos os heróis de Todd Haynes, Arthur é quiçá o mais pessoal e “Velvet Goldmine” sua fita mais inesperadamente sentida. Comove e arrebata, inebria e faz sonhar – é magia!

“Velvet Goldmine” está disponível na plataforma de streaming da FILMIN Portugal. Além disso, também podes comprar o filme através do iTunes, Google Play e Youtube.

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