©Todd Haynes/Festival de Cannes

76º Festival de Cannes | Anatomie d’une Chute: Dissecar um Casal

O melodrama ‘May December’, de Todd Haynes com Natalie Portman e Julianne Moore era um dos filmes mais aguardados da Competição. Porém ‘Anatomie d’une Chute’, da francesa Justine Triet, um fabuloso thriller doméstico e de tribunal, é a grande surpresa. Ambos, à sua maneira, dissecam as relações de dois casais.  

O tema da complexidade de um casamento, de uma vida em comum, marca dois dos filmes mais cotados e apresentados até agora da Competição. Porém ‘Anatomie d’une Chute’, o novo filme em da francesa Justine Triet — a realizadora ‘Sybil’, com Virginie Efira, em uma psicóloga em crise —, conseguiu surpreender-nos com um admirável thriller doméstico e judicial, que joga de forma incrível com as expectativas do espectador; e conta com uma fabulosa protagonista, cheia de ambivalência, interpretada por uma impressionante Sandra Hüller (‘Toni Erdmann’), também actriz de ‘The Zone of Interest’, de Jonathan Glazer. A propósito pelas sua duas brilhantes interpretações Sandra Hüller é sem dúvida já uma forte candidata ao Prémio de Interpretação Feminino. ‘Anatomie d’une Chute’ é efectivamente uma obra densa, cativante e inclassificável. O filme segue Sandra (Hüller), uma escritora de sucesso, de origem alemã, com tendência para a escrita de auto-ficção, que mora nos Alpes suíços, com seu marido Samuel (Samuel Theis) e seu filho Daniel (Milo Machado Graner) que é deficiente visual. Um dia, ao voltar de um passeio com seu cão, Daniel encontra o corpo de seu pai, caído na neve ao pé da casa. Logo é aberta uma investigação de homicídio e a viúva, apoiada pelo advogado da família (Swann Arlaud), acaba por acusada de homicídio e ter de lutar pela sua defesa. Mas terá sido um crime, um suicídio ou apenas um acidente?

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Festival de Cannes 2023
‘Anatomie d’une Chute’, © Justine Triet

‘Anatomie d’une Chute’ propõe-se em cerca de 2h30, de uma forma notável, dissecar o passado de um casal e sobretudo o caracter da personagem de Sandra, através do seu julgamento e comportamento diário em casa em preventiva. E para saber até que ponto a mulher, esteve envolvida na morte do marido, tudo será escrutinado: a sua vida sexual, carreira ou até mesmo seu papel como mãe. Num registo bastante familiar mas inclassificável, o filme é uma combinação dos clássicos ‘whodunit’ (quem matou?) e do filme de tribunal, géneros onde o espectador  espera obviamente uma resolução, respostas claras e um pouco de sensacionalismo. Mas, também tudo combinado com o filme experimental — sobretudo ao nível da montagem e dos planos rápidos e precisos — pois vai aproximando-se cada vez mais da vida íntima das suas personagens, através de flashbacks e planos aproximados, provando a impossibilidade de resumir em poucas frases e diálogos, toda a complexidade de uma pessoa ou de um relacionamento de um casal. É justamente nesse paralelo que actua o filme de Justine Triet, contando uma história de um verdadeiro pesadelo individual, onde a vida privada de uma pessoa é atirada para a esfera pública, ainda mais sendo ela bastante conhecida como escritora. O filme visualmente poderia também assentar as suas referências nos melhores do género, de ’12 Homens em Fúria’ (1957) a ‘Saint Omer’ (2022), obras com uma estética muito precisa: linhas simétricas, planos estáticos, molduras majestosas. Porém pelo contrário, ‘Anatomie d’une Chute’ inverte tudo isto com seu movimento constante, livre e às vezes até agitado: zooms, ângulos extremamente baixos e movimentos de câmara, procurando diferenciar-se bastante dos códigos do género.

VÊ TRAILER DE ‘ANAOTOMIE D’UNE CHUTE’

Por trás do aparato jurídico, ‘Anatomie d’une Chute’ mostra também o talento de Justine Triet para desenhar retratos de mulheres de rara complexidade e às vezes até desagradáveis: Sandra é ambiciosa, frontal, às vezes antipática e camaleónica até nas várias línguas que fala ao mesmo tempo. É um papel extraordinário desempenhado pela impressionante Sandra Hüller, atriz alemã que já foi memorável num um papel secundário em ‘Sybila’ (2019) de Triet, e como protagonista da louca comédia alemã ‘Toni Erdmann’ (2016), de Maren Ade. Enquanto escrevia este filme, a cineasta assistiu a História de um Casamento, o filme de Noah Baumbach ao qual este filme parece ter também referências implícitas. Sandra é uma personagem moderna também na sua relação com o marido, eles não são um casal padronizado e os papeis invertem-se: Samuel é quem fica em casa para cuidar do filho, enquanto Sandra se dedica à carreira, daí a possibilidade de como acontece com muitas mulheres sem carreira, o homem cair na depressão. Depois há as portas metatextuais no argumento escrito pela realizadora juntamente com seu companheiro, o realizador Arthur Harari (‘Onoda’).

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‘Anatomie d’une Chute’, ©Justine Triet

No filme, Sandra — e as suas obras anteriores chegam mesmo a ser revistadas em tribunal — e Samuel são ambos escritores e a conflituosa competição profissional entre eles é usada como uma prova incriminatória no julgamento. Ou seja até onde vai a auto-ficção como espelho da realidade e até que ponto isso se pode tornar literatura? Será que isso pode tornar-se mesmo numa armadilha, num ponto de tensão e toxidade, violência doméstica e até crime? Curiosamente Arthur Harari, tem aliás uma saborosa pequena participação, encarnando um convidado de um programa de debate literário na televisão, que comenta a obra de Sandra, a sua ligação com o julgamento e a emoção dos casos de homicídio. Gostando também de frustrar as nossas expectativas, o filme passa de um ponto de vista para outro (a mãe, o filho), e questiona constantemente a noção do olhar: o de todos os protagonistas, mas também o nosso. Tal como a personagem de Marge — a preceptora do tribunal — resume para Daniel: ‘quando não podemos saber a verdade, só temos que fazer uma escolha’. Cabe ao público fazer a sua final. Porém, e sem desvendar muito a chave de tudo, está no cão!

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VÊ TRAILER DE ‘MAY DECEMBER’

Em ‘May December’, o realizador norte-americano Todd Haynes (‘Carol’), regressou com um drama romântico protagonizado por duas atrizes muito conhecidas, que se cruzam pela primeira vez nos filmes: Natalie Portman e Julianne Moore. À dupla de actrizes, que são a essência desta história da instabilidade de um casamento e da disputa de ‘egos’ entre as duas mulheres, junta-se Charles Melton, o actor revelado na série ‘Riverdale’ (Netflix), que interpreta o marido da personagem de Julianne Moore. Em ‘May December’, o realizador norte-americano Todd Haynes explora igualmente a vida de um casal cuja diferença de idade desperta a atenção dos media, mas os temas das relações humanas, do amor e da passagem do tempo. Para se preparar para seu novo papel, uma atriz famosa (Natalie Portman) vem conhecer aquela que ela interpretará nas telas (Julianne Moore), cuja vida romântica incendiou a imprensa sensacionalista e fascinou o país, cerca de 20 anos antes. Julianne Moore interpreta Gracie Atherton-Yu, cujo romance com Joe (Charles Melton), um seu funcionário, vinte anos mais novo que ela. Vários anos depois, o casal agora está casado e preparando-se para enviar seus filhos (Piper Curda, Elizabeth Yu e Gabriel Chung) para a faculdade. E Joe aceita ver seus filhos deixarem o ninho, quando tem apenas 36 anos de idade. É então que para casa deles vem Elizabeth Berry (Natalie Portman), uma conhecida actriz de Hollywood, que quer passar um tempo com a família e entender melhor Gracie, antes de interpretá-la num próximo filme. Interferindo o mais profundamente possível na sua história para garantir que seja dada uma interpretação autêntica, Elizabeth desencadeia uma crise familiar, com cada personagem forçado a confrontar e a processar o passado, ao mesmo tempo que gradualmente vão sentindo as suas vidas iram passando com o tempo e as sua inseguranças virem ao de cima. A amplitude da história, as duas estrelas vencedoras do Oscar e a capacidade de Todd Haynes de produzir a partir de histórias vulgares, quase ‘soaps’, melodramas luxuosos, a fama ou uma Palma de Ouro, podem muito bem estar no horizonte, para este filme para já o mais bem classificados na tabela da crítica. Foi estreia cheia de glamour, mas para mim pareceu-me um filme bastante vulgar.

JVM

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