"O Apartamento" | © United Artists

Cinema Natalício | O Apartamento (1960)

Billy Wilder foi um dos grandes mestres do cinema e “O Apartamento” é uma das suas mais aclamadas obras. Protagonizado por Jack Lemmon e Shirley MacLaine, esta comédia negra em época festiva foi uma sensação aquando da sua estreia em 1960. De facto, tanto foi o alarido que o filme conquistou cinco Óscares – Melhor Filme, Realizador, Argumento Original, Montagem e Cenografia. Além disso, foi também nomeado para Melhor Ator, Atriz, Ator Secundário, Fotografia e Som. Hoje em dia, é considerado um dos grandes clássicos de Hollywood e continua a ser filme favorito daqueles que se perdem em melancolias durante o Natal.

Será que a crueldade é compatível com o espírito natalício? Talvez não, mas milagres acontecem e o cinema de Billy Wilder é certamente miraculoso. Conhecido pelas suas comédias mordazes e dissecações impiedosas da psique Americana, o realizador de origens polacas começou a carreira enquanto argumentista. A diversão ligeira era o seu forte, mas sempre houve negrura delineada por entre as gargalhadas. Quando fez a transição para a realização em Hollywood, Wilder começou meio longe do circo humorístico. Seus primeiros filmes foram romances e dramas de guerra, film noir, estudos de personagem centrados em alcoólicos e outros desgraçados da sociedade.

cinema natalicio o apartamento
© United Artists

No cinema mainstream, há poucas figuras mais abrasivas que aquelas almas perdidas a quem Wilder concedeu o estatuto de protagonistas. Isso é especialmente forte nas suas comédias, por muito estranho que pareça. No universo deste artista, o degredo não é antítese do divertido, sendo que algum do humor mais forte floresce da mais pura das misérias. Não há melhor exemplo disso do que “O Apartamento,” trabalho cínico e bilioso cujos cheirinhos de amor pouco fazem para esconder um espírito depressivo. Também se poderá categorizar como cruel, ideia tão contrária ao cenário festivo entre o Natal e a Passagem de Ano.

Perante tais dizeres, esperar-se-ia um trabalho misantropo e sem grande humanidade, mas o contrário acontece. “O Apartamento” perscruta as partes mais tenebrosas da alma para, no fim, alcançar as réstias de esperança que brilham na alvorada do Réveillon. Os estilos cómicos servem para eviscerar uma contemporaneidade entorpecida pelos cismas sociais do pós-guerra, centros urbanos onde a solidão domina e cada pessoa é só mais uma parte na grande máquina do capital. Tanto isso se regista em texto como em forma. Atente-se o modo como Wilder filma Nova Iorque, seus escritórios sem fim e ruas escuras.

A câmara orientada por Joseph LaShelle desenha pinturas de luz geometrizada, sombras sinuosas em monocroma fazem os espaços parecer cavernosos e vazios, mesmo quando nos encontramos em cenário exterior. É na observação de uma empresa de seguros que chegamos ao nosso anti-herói cabisbaixo. Num mar de secretárias presas em quadriculas de tédio, C.C. “Bud” Baxter recita estatísticas em narração de surdina. A complexidade da vida é reduzida a números frios, toda a experiência de ser humano espalmada na folha de cálculo. Em tal enquadramento, não há oportunidade para pessoas serem pessoas e assim se quer – assim é mais lucrativo.

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Seguimos Bud à medida que o dia dá lugar à noite, cadeiras sem ninguém sua única companhia. É que, na tentativa de conquistar as boas graças dos patrões, o profissional subalterno tem um esquema de aluguer em troca de favores. Por outras palavras, quando os seus superiores querem um sítio para levar as amantes, vão para casa dele, enquanto este faz tempo ora no trabalho ou dormindo sestas em bancos de jardim. Trata-se de uma existência ingrata, onde até o santuário do domicílio se sacrifica em nome da promoção. Só que, para o fulano sem imaginação num mundo sem imaginação, nada podia ser melhor e tudo corre de vento em popa.

Tanto é que, num raro ataque de otimismo, ele decide convidar uma colega a quem faz olhinhos desde tempos imemoriais para um encontro. Ela é Fran Kubelik, uma funcionária dos elevadores que também se encontra em negócios ilícitos com os patrões. Só que as suas intenções são genuínas ao invés de mercenárias, tendo a moça caído de amores pelo homem casado com quem tem um caso. Esse é outro ponto de união entre os dois protagonistas do “Apartamento.” Bud quer ser promovido pelo empresário Jeff D. Sheldrake, enquanto Fran quer legitimar a sua paixão. O problema é que o chefão está só a usar a rapariga pelo corpo, abusando da sua confiança, honestidade, da sua devoção.

Sedento pela aprovação superior, Bud mais uma vez faz um sacrifício egoísta, deixando que Sheldrake continue a maltratar a mulher num triângulo amoroso onde só quem tem poder económico tem hipótese de ser feliz. Chegado ao epíteto da sua tormenta, cada um destes heróis pouco heroicos encaram a situação de maneira distinta. Bud é um patético bobo da corte, acarretando com indignações para conquistar favores no futuro próximo. Fran segue semelhante lógica, como que assumindo ganhar o afeto do amante através da resiliência leal. Só que até os santos têm os seus limites. Não estando disposta a ser recetáculo de maldades alheias por mais um segundo, ela decide pôr fim à própria vida. Feliz Natal e Bom Ano Novo!

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Que miséria de vidas, que miséria de história – ou melhor, que desesperante primeiro ato. Fran não é bem-sucedida no seu esforço autodestrutivo, acabando por ficar aos cuidados de Bud durante a quadra de recobro. Durante o seu convívio, ambos fechados num cenário sinónimo com sórdido adultério, os dois aprendem a encontrar algo a amar um no outro. Mais importante, eles aprendem a respeitar-se a si mesmos. “O Apartamento” é uma sátira social suturada à história de amor, mas o maior arco narrativo corresponde à evolução interna de cada personagem. Tamanha metamorfose tonal não é fácil de transmitir, sendo que nem o argumento nem a realização conseguem transpor do cáustico para o gentil por si só.

A chave para o triunfo está nos atores, cada um pronto a fincar os dentes em caracterizações complexas, carnudas, cheias de contradições atravessadas por compaixão. Jack Lemmon é perfeito como Bud, disposto a expor toda a feiura da personagem sem limar nenhuma aresta ou polir as suas máculas. Shirley MacLaine é ainda mais impressionante no papel de Fran, personificando aquele tipo de isolamento tão próprio da metrópole moderna. Juntos, os dois intérpretes delineiam um poema tonal sobre solidão, enquanto Fred MacMurray propõe o seu Sheldrake como um elemento de contraste. Também Jack Kruschen merece aplausos como um médico vizinho de Bud, cheio de julgamento no olhar e um moralismo ácido capaz de temperar a mais intensa das lamechices. Sim, porque “O Apartamento” pode almejar por um final feliz, mas nunca é sentimentalista.

“O Apartamento” está disponível, para aluguer ou compra, na MEO, Apple iTunes, Google Play e Youtube. Também poderás encontrar o filme em DVD e Blu-ray.


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