Crónica de um Festival da Canção

 

“Eu quero ser tua como o rio é do seu mar
“Eu quero ser tua como o mel do teu beijar”
(“Eu quero ser tua”, letra e música de Emanuel. Canção vencedora do Festival RTP da Canção 2014)

 

E quando se esperava alguma qualidade ou dignidade do festival RTP da Canção 2014, eles…pimba!
Tratava-se de realizar mais uma edição do Festival da Canção, aproveitando o evento para fazer também a comemoração do seu 50º aniversário, mas o resultado dificilmente poderia ter sido pior. Más canções, cenários medíocres, números musicais mal cantados, mal dançados e mal coreografados com um tal de Henrique Feist a protagonizar alguns dos piores momentos de televisão nacional dos últimos anos. O prémio foi para uma canção da autoria de Emanuel, um dos maiores responsáveis pela praga de vulgaridade que assolou a música portuguesa nos últimos vinte anos. Uma vergonha, se pensarmos no passado prestigiante e relativamente digno do Festival RTP da canção, e uma vergonha ainda maior se pensarmos que tudo isto se passou na televisão pública.

RTP Festival da Canção, _o
Goste-se ou não, é um facto que ao longo de quase cinquenta anos de Festival passaram por lá não só muitos nomes importantes da canção e música portuguesas, mas também referências incontornáveis da poesia e da cultura do nosso país. Mesmo nos últimos anos, aconteceram vitórias como a dos Homens da Luta ou a dos Flor de Liz, por exemplo, que mostravam que dentro de certos parâmetros até era possível o Festival preservar uma certa integridade. O Festival tem uma história de que fazem parte, entre muitos outros, intérpretes como Carlos do Carmo, Paulo de Carvalho, Carlos Mendes, Fernando Tordo, Gabriela Schaff, José Cid, Teresa Silva Carvalho, Duarte Mendes e Maria Guinot, e ainda autores como José Carlos Ary dos Santos, Fernando Lopes-Graça, José Mário Branco, Manuel Alegre, José Niza, Pedro Osório, António Pinho e Nuno Rodrigues, pelo que merecia ter sido tratada doutra forma: com menos superficialidade e mais conteúdo. Claro que o Festival é um evento comercial e vocacionado para as massas (já agora onde é que elas estariam este ano à hora do Festival?), mas sendo uma das principais imagens de marca da RTP, a televisão pública, devia obedecer a critérios mínimos de qualidade.

Lê Também:   As inesquecíveis músicas que marcaram o 25 de Abril

Uma vitória inacreditável

Apesar do reconhecido profissionalismo dos apresentadores, José Carlos Malato e de Sílvia Alberto, esses critérios mínimos desta vez não se verificaram e tudo foi mau do princípio ao fim, exceptuando um momento de qualidade, o único, em que Lúcia Moniz cantou a canção com que Maria Guinot ganhou o Festival em 1984. Mesmo a homenagem a Ary dos Santos feita na eliminatória foi mal conseguida, até por ter sido entregue a Dora e a Adelaide Ferreira, cantoras que pouco ou nada tinham a ver com o poeta homenageado, enquanto inúmeros cantores que trabalharam directamente com ele e o cantaram, de Simone a Carlos do Carmo, podiam ter feito da homenagem um momento com valor e sentido. Enfim, o que vale é que só se lembram destas coisas uma vez por ano…

Falemos agora sobre as canções em concurso. A grande final do Festival de 2014 apresentou cinco canções bastante equilibradas na sua falta de qualidade, o que tornava quase impossível decidir qual a pior. Aliás, não me admirava muito que a maioria dos telespectadores tenha pensado mesmo que era para votar para expulsar – como na Casa dos Segredos – e tenha votado na canção que não queria voltar a ouvir na casa, isto é, no palco. Não sei ao certo se foi isso que aconteceu, mas isso até explicava muita coisa, a começar pelos resultados tanto da eliminatória como da final. Sim, porque uma semana antes tinha acontecido uma primeira eliminatória em que foram apresentadas dez canções para que se apurassem, através dum sistema de votação telefónica, as cinco mais votadas para a final. Já agora, confesso que é difícil não se ser assaltado por uma série de suspeitas perante um tão reduzido número de canções: dez na eliminatória e cinco na final.

festival 2

Francamente, o que parece é que a RTP já tinha planeado dividir o Festival em duas partes, uma eliminatória e uma grande final, e como não conseguiu arranjar mais do que dez canções ao todo, ao que parece por convite e mesmo assim nenhuma delas com um mínimo de qualidade, decidiu manter o planeado, acabando por fazer uma final com o ridículo número de apenas cinco canções. Foi caricato, por exemplo, ver a concorrente que ficou em 3º lugar, Catarina Pereira, entusiasmadíssima com o seu honroso lugar no pódio, quando sobre outra perspectiva ela tinha ficado em antepenúltimo lugar.

Lê Também:   As inesquecíveis músicas que marcaram o 25 de Abril

Uma palavra ainda para o sistema de seleção das canções apresentadas. Pelo que se soube, os autores das canções em concurso foram directamente convidados a participar pela RTP, não tendo havido portanto um concurso público como seria expectável, transparente  e honesto num canal público de televisão. Isto pode parecer que não tem grande importância e que foi só uma artimanha para ajudar uns amigos, o que por si só já seria grave, mas indicia práticas de censura, o que é ainda de maior gravidade e inaceitável. De facto, fica-se sem se perceber que critérios foram esses, que levaram a convidar pessoas de tão fraca qualidade e até oriundas do meio pimba.Tudo isto faz da edição de 2014 do Festival RTP da canção uma das maiores vergonhas da história desta estação e mais uma a juntar às vergonhas diárias que vão fazendo a história recente deste país.

CpBUB

Resta dizer que duas das canções eliminadas, “Eu Vou” de Ivo Lucas e “Mais Para Dar” de Carla Ribeiro (aliás, a melhor cantora em concurso) mereciam mais estar na final do que qualquer das cinco apuradas. Sobre estas, nem vale sequer a pena perder tempo a tentar perceber qual merecia ganhar, até porque nenhuma merecia. Valerá a pena, contudo, dedicar alguma atenção ao facto do prémio desta vez – e que creio pela primeira vez na história do Festival RTP da Canção – ter ido para uma canção assumidamente pimba. Sinal dos tempos que vivemos, em que a música pimba ocupa quase todo o espaço musical dos canais genéricos, incluindo o da televisão pública? Sinal dos tempos que vivemos, em que a televisão pública não cumpre minimamente os seus objectivos informativos e culturais? Sinal dos tempos que vivemos, em que a cultura se submete cada vez mais à lógica, muitas vezes ilógica, dos mercados e do poder político?

 

João Peste Guerreiro

2 thoughts on “Crónica de um Festival da Canção

  • Não deixo de concordar com algumas coisas que escreveste.
    Mas para queres convencer do teu conhecimento sobre o que opinas, tens de ser mais criterioso sobre a informação que dás e não cometeres algumas gafes… Lê bem antes de publicares.

  • Caro João, lamento o facto de ter feito muito mal o seu trabalho.
    Ainda que concorde com parte do seu comentário ao festival, acho que devia ter mais cuidado com o que escreve não sabendo concretamente do que fala.
    Em primeiro lugar, as duas fases do festival baseiam-se na necessidade de angariar facilmente dinheiro para a estação de televisão pública RTP, isto é, são apresentadas 10 canções num fim‑de‑semana e dessas ficam cinco sujeitas a votação ilimitada pelo Televoto durante uma semana inteira. Certo é que ganhou o produtor Emanuel, artista vencedor de vários programas da RTP sujeitos a Televoto (Festival da Canção 2007 e Melhor canção do ano 2012!). Curioso.
    Em segundo lugar, não sabe até que ponto as únicas pessoas que aceitaram fazer parte deste evento foram aquelas que lá estiveram.
    Em terceiro lugar, a concorrente a que se refere ficou em segundo lugar em ambas as votações já que os resultados foram apresentados por ordem dos mais votados.
    Concluindo, a canção que deveria ter ganho (supostamente) seria a do Rui Andrade, canção que obteve mais votos do publico na semi-final (contava apenas um voto por número de telefone/telemóvel.
    Para terminar, lamento que seja a música “Quero ser tua” a representar Portugal na Eurovisão, mas talvez espelhe mesmo o estado do nosso país.

    Aproveito também para lamentar o facto de a RTP não ter convidado (sim, a RTP não convidou) Eládio Clímaco para ser o apresentado deste festival na comemoração do seu 50 aniversário.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *