The Neon Demon – O Demónio de Néon, em análise
The Neon Demon merece ser chamado o mais ofensivo filme de 2016, se considerarmos também que é uma das mais fascinantes experiências cinematográficas do ano.
Apupado em Cannes e depois agraciado com 17 minutos de aplausos, The Neon Demon – O Demónio de Néon tem-se vindo a afirmar como um dos mais controversos e polarizantes filmes de 2016. Não é difícil perceber a razão por detrás de tais reações. Na conceção desta sua nova obra, o realizador Nicolas Winding Refn construiu uma verdadeira explosão de mau gosto descarado e hipérbole estilística que parece ter tantos traços de giallo, como de slasher, exploitation flick e severo cinema de festival à moda europeia. Uma mistura destas só poderia mesmo acabar em artigos a proclamá-lo como o filme mais ofensivo do ano. E não foram só as massas críticas em busca de uma respeitável obra de autor que se viraram contra este projeto, pois também os maiores fãs do terror e do trash parecem ter sido pessoalmente ofendidos pelo filme e a sua soporífera lentidão. Em resumo, temos aqui uma obra que enfurece gregos e troianos e que é, por consequência, um dos mais fascinantes feitos cinematográficos dos últimos tempos – daí a ovação de 17 minutos, não?
Mas afinal de que trata esta tão polémica obra? The Neon Demon conta a história de uma jovem adolescente, Jesse, que chega a L.A. com grandes sonhos de se tornar modelo. Ela é portadora de uma beleza que, se acreditarmos no que todas as outras personagens dizem, é perfeitamente assombrosa. Todos a admiram ou detestam pela sua perfeição, sendo que ela vai ascendendo na carreira de modelo a uma velocidade vertiginosa. Como não podia deixar de ser, esta flor natural no meio do plástico demoníaco acaba por ser esmagada pelas mulheres que se sentem ameaçadas pela sua existência.
Nada disto é novo e é mais fácil reagir ao enredo com um revirar de olhos do que com qualquer tipo de espanto ou admiração. Refn e a sua equipa de duas dramaturgas tornadas argumentistas de cinema, Mary Laws e Polly Stenham, conceberam uma narrativa tão pejada de clichés que é quase uma sintetização da montanha de filmes que, pelo menos desde os anos 60, se têm interessado em mostrar como, por baixo da cultura de superficialidade que reina em Hollywood e nas passerelles internacionais, esconde-se podridão moral. Acusar um filme destes de mau gosto é como criticar um musical por ter demasiadas canções, ou ficar espantado por um filme de ação ter sequências de ação. A enchente de mau gosto, amoralidade, cliché e superficialidade é uma parte tão intrínseca do projeto que se torna praticamente a sua raison d’être.
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No centro dessa torrente de provocação deliberada está a figura angélica de Jesse, interpretada por Elle Fanning no perfeito registo de vácuo humano. A prestação da atriz, o texto e o olhar da câmara fazem da personagem uma conflagração de ideias sobre beleza feminina e contradições violentas. Ela é simultaneamente uma virgem inocente e uma demoníaca narcisista, ela é santa e pecadora, pura encarnação de virtude e fantasia sexual tornada criatura de carne e osso. Jesse não é humana mas sim uma superfície refletora sobre a qual Refn e a audiência veem as suas ideias refletidas e asseguradas. Por seu lado, o autor dinamarquês nunca ousa tornar The Neon Demon num conto moral. Jesse pode ser o grotesco feminino mas o seu realizador nunca exige que a audiência a julgue. Pelo contrário ele quer que nós a veneremos em toda a sua brilhante contradição. Refn não nos está a avisar de um mundo moralmente putrefacto, mas sim a escrever uma carta de amor à sua podridão. Em entrevistas, ele disse que este é um filme sobre beleza e está certo, este é, na sua mais perturbadora essência, uma obra sobre superfícies belas, que nada têm para além dessa superfície.
Na verdade, se há alguém a ser vítima de demonização moralista, é o olhar da câmara que observa Jesse e as mulheres que a destroem. Muitas vezes, encontramos tristes falácias no plano da discussão sobre cinema onde são criadas falsas dicotomias entre conteúdo e estilo, como se o estilo não pudesse valer por si mesmo ou, por outras palavras, como se o estilo não fosse conteúdo. Essa crítica fácil tem sido muito atirada contra The Neon Demon, ignorando a essência da obra em questão, uma obra que, como já estabelecemos, existe quase somente no registo da superfície. Não estamos perante um drama narrativo, mas sim na presença de uma experiência estética que parece ter germinado diretamente do id de uma figura narcisista envolta no mundo da superficialidade divina. Não é que esta obra não tenha substância, mas a sua substância é explícita de um modo visual e o que normalmente é uma metáfora aqui é exteriorizado e tornado literal. Presumir que a superficial narrativa de The Neon Demon deve ter uma relação tangível com o mundo real e ser “credível” é ignorar o que o seu estilo, o seu real conteúdo, nos está a atirar à cara. Presumir que a obra tem uma relação direta com o nosso mundo real é, na verdade, quase como ir à caça de gambuzinos. As ligações entre realidades estão mais contidas no que a audiência lá insere e reflete do que na experiência hermética do projeto em si.
Se há um análogo tangível entre a construção deste filme e alguma peça de obra visual fora do cinema, então é a revista de moda. Ver The Neon Demon é como folhear uma Vogue imaginada por psicopatas. A fotografia de Natasha Braier, os figurinos de Erin Benach e a música de Cliff Martinez asseguram-se dessa atmosfera a la magazine de moda canibal. Veja-se uma cena de passerelle onde nos encontramos claramente numa realidade alternativa, num sonho que termina com um orgasmo de narcisismo celestial quando uma modelo venera o seu reflexo com beijos. Na quase abstração, Refn encontra o seu já mencionado registo de metáfora literal. Não admira que, ao longo do enredo, algo que usualmente seria subtexto vampírico tome proporções literais de chocante canibalismo e necrofilia.
Esta superficialidade é usualmente um acidente para cineastas em busca de algo profundo, mas The Neon Demon recusa tal busca. “Beauty isn’t everything, it’s the only thing” diz uma caricatura de um estilista e assim verbaliza o mantra no centro de todo o filme e também a sua pedra roseta. Pode parecer uma filosofia nojenta, mas é uma perspetiva raramente representada nos anais do cinema moderno, o que, só por si injeta valor no projeto. Estamos tão habituados a denegrir, por razões morais, o apogeu do valor estético acima de qualquer outro que nos esquecemos de apreciar essas visões. Em sumário, esta não é uma construção sobre pessoas e só se aceitarmos isso conseguimos realmente entregar-nos ao feitiço de The Neon Demon. Jena Malone, que oferece aqui a mais sublime prestação da sua carreira, sabe isso muito bem, construindo na figura de uma maquilhadora sedenta de afeto uma tempestade de violenta provocação que é quase primordial na sua diabólica simplicidade e hipérbole. Ela não subverte ou nega os clichés do argumento, mas celebra-os e leva-os ao extremo.
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Com tudo isto dito, ninguém está incorreto quando acusa The Neon Demon de ser um filme misógino, amoral, homófobo, superficial, pretensioso ou desumano. No entanto, para quem esteja disposto a aceitar o jogo de choque e provocação que Refn conjurou e entender a natureza deste filme como uma obra de exploitation cinema e festim estético, existem glórias a ser descobertas no seu interior. O tipo de extremismo entre entediado ódio e fervorosa devoção que o filme despoleta na sua audiência acaba por ser, numa análise final, mais interessante que inofensiva aceitação anódina, sendo também mais valioso.
O MELHOR: Oh, há tantas opções! A destemida prestação de Jena Malone? As cores híper saturadas? A inebriante formalidade? O modo como Refn torna a câmara no verdadeiro monstro do filme e não as modelos canibais? O facto de que, apesar da sua premissa aparentemente antifeminista, os homens do filme são pouco mais que adereços estúpidos e irracionais?
O PIOR: Apesar de todo o prazer concetual que provém do seu uso de clichés, é fácil apontar para a história de The Neon Demon como o seu ponto mais fraco. Depois de ver o filme, sai-se do cinema com a sensação que um registo totalmente abstrato ou surreal funcionaria muito melhor que a dependência narrativa que vemos em evidência.
Título Original: The Neon Demon
Realizador: Nicolas Winding Refn
Elenco: Elle Fanning, Jena Malone, Keanu Reeves, Abbey Lee, Bella Heathcote, Karl Glusman, Alessandro Nivola, Christina Hendricks
Leopardo Filmes | Drama, Terror, Thriller | 2016 | 118 min
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