DocLisboa ’18 | Monrovia, Indiana

DocLisboa ’18 | Monrovia, Indiana, em análise

Frederick Wiseman, recentemente galardoado com um Óscar honorário, volta ao festival que já muitas vezes trouxe os seus filmes aos olhos do público português. Trata-se do DocLisboa e o filme deste ano é “Monrovia, Indiana”.

A cidade de Monrovia, no Indiana, é o tipo de pacata localidade rural que muitas pessoas imaginariam se lhes pedíssemos que descrevessem o tipo de comunidade que levou Donald Trump à Casa Branca. Aqui a maior parte da população é branca e tem valores tradicionais, nas feiras há tendas do Partido Republicano e vendem-se autocolantes e tapetes de entrada com mensagens jocosas contra o controlo de armas de fogo. Aqui, a igreja tem um papel central na identidade moral da população e seu modo de vida, enquanto, nas escolas, antigos estudantes que atingiram mínimo sucesso desportivo são glorificados como heroicas figuras de importância histórica. Os casamentos incluem cerimónias em que o casal constrói uma cruz ornamental e os cafés estão cheios de senhores velhotes a falar de como, quando as mulheres estão fora, não há ninguém que lhes faça o jantar.

Nas mãos de muitos cineastas, este seria uma visão ora cheia de ironia e desdém pelas pessoas e pela cultura representada, ou então uma celebração das mesmas. No caso de “Monrovia, Indiana” o que temos é um retrato anti sentimentalista que não dá respostas ou permite fáceis leituras ao espectador. Seguindo o modus operandi que tem vindo a caracterizar toda a sua carreira, Frederick Wiseman filma a comunidade sem aparato ou dramatismo, simplesmente catalogando a sua existência. A montagem é seca e sem humor ou deleite, os ritmos vagarosos e a banda-sonora não tem música a não ser que esta se manifeste nas situações que decorrem em frente à câmara. Não há entrevistas, não há nunca um vislumbre do cineasta, só observação. Movimentos de câmara e zooms são raros e chocam sempre que se manifestam.

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Esta é a América de Trump. Será?

Além de tudo isso, Wiseman faz a escolha peculiar de nunca entrar numa só casa de Monrovia. O seu interesse é o espaço público e não o privado. Vemos escolas, cafés, restaurantes, igrejas, cemitérios, reuniões do concelho municipal e festejos no parque. Até vemos uma clínica veterinária, onde, por momentos, parece que Wiseman está finalmente a revelar a sua opinião sobre as pessoas que observa. Aí, o realizador mostra-nos, em sangrento detalhe, o procedimento pelo qual veterinários cortam parte da cauda a um cão. Trata-se de uma prática comum, mas que a própria Associação de Veterinários Americanos condena pois, na maioria dos casos, é feita por razões cosméticas e tem efeitos malignos na vida do cão. Em muitos países da Europa, trata-se de uma prática proibida, mas em Monrovia é mais um dos costumes e tradições que nunca são questionados, não obstante a crueldade que lhe é subjacente.

No início do filme, Wiseman chama atenção para o diminuto número de habitantes na cidade, uns meros 1063, e depois passa grande parte das horas seguintes a visitar as discussões sobre a possibilidade de se construírem mais casas numa estrada vazia da periferia suburbana. No meio de opiniões divergentes, há uma certeza que se acentua. Trata-se do facto de que esta comunidade quer continuar a ser pequena e não vê com bons olhos a vinda de forasteiros. Tal como a cirurgia desnecessária feita aos cães, o tamanho diminuto da comunidade é algo a que todos já se habituaram e este é um mundo em confortável estagnação. A mudança e a variedade são inimigos nunca verbalizados, cuja ameaça permeia a mentalidade do populus.

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Quando comparado com os mais recentes filmes do realizador, onde Wiseman examinou o ecossistema humano de bibliotecas públicas, museus nacionais, universidades prestigiadas e o bairro mais multicultural dos EUA, “Monrovia, Indiana” pode parecer banal e aborrecido. Contudo, tal banalidade é necessária para a autenticidade do projeto. Afinal, este não é um centro cultural num ambiente urbano. Esta é uma comunidade perdida no meio do nada, como podemos ver pelas várias montagens de trabalho agrícola, onde a câmara de Wiseman pinta tableaux de enormes vazios, onde só existe feno e nem uma pessoa por quilómetros e quilómetros. Nada disso é necessariamente mau e Wiseman até consegue encontrar grande beleza nas paisagens.

Esta ambivalência, que é fruto do estilo de Wiseman e da sua clara vontade de não se pronunciar claramente em relação aos seus objetos de estudo, pode irritar muitos espectadores e frustrar ainda mais. Num panorama de aceso conflito político, a histeria persuasiva de Michael Moore ou as tragédias bem informadas de Ava DuVernay representam o tipo de reação cinematográfica mais lógica. Nada disso, no entanto, tira valor à passividade aparentemente apolítica de Frederick Wiseman. Não há melhor maneira de forçar a audiência a pensar e questionar o que está a ver, a dialogar com as ideias contidas num filme do que uma recusa constante em oferecer respostas. Quem estiver à procura de gratificação fácil ou uma validação vocífera de opiniões pessoais, ficará indubitavelmente insatisfeito.

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Um dos filmes mais complicados e ambivalentes do realizador.

Só um espectador disposto a dialogar com “Monrovia, Indiana” e aceitar as suas complicações e ambiguidades poderá tirar algo da experiência. Mesmo quando Wiseman nos dá todos os ingredientes para condenar o que vemos, também nos oferece um momento de solene humanidade ou um rasgo de valor comunitário. Podemos querer rir-nos de alguns dos costumes, mas é clarividente que as tradições dão algo importante a estas pessoas, nem que seja só um sentido de pertencerem a algo maior que elas. O contrário também se verifica e é complicado ver aqui uma comemoração de uma ruralidade conservadora sem dar de caras com ambivalências problemáticas. “Monrovia, Indiana” pode bem ser um trabalho menor na filmografia formidável de Frederick Wiseman, perdendo muito na sua falta de especificidade e pesquisa doméstica, mas não é por isso uma obra simplista ou desinteressante. Pelo contrário, este é um dos filmes mais difíceis do realizador e merece considerável admiração.

Monrovia, Indiana, em análise
DocLisboa Monrovia Indiana critica

Movie title: Monrovia, Indiana

Date published: 22 de October de 2018

Director(s): Frederick Wiseman

Genre: Documentário, 2018, 143 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO

Longe de ser uma dissecação política ou uma elegia etnográfica a uma América esquecida, “Monrovia, Indiana” é um retrato simples, seco e ambivalente de uma comunidade que pode representar uma imensidão de outras semelhantes. O humanismo de Frederick Wiseman está presente em todo o projeto, mas sua insistência em nunca tornar o filme numa tese ou num argumento causa muita frustração a alguns espetadores em busca de algo mais fácil de digerir. Com a sua duração comprida, imagens desconcertantes, ritmos vagarosos e perspetiva ambivalente, este é um filme difícil, mas que vale a pena ver e confrontar.

O MELHOR: Os últimos minutos do filme são dedicados a um funeral, onde todos os temas nunca verbalizados do filme parecem culminar. Há solenidade e grotesco nos procedimentos, algo comovente e algo quase humorístico, há um plano interminável de um padre que parece um ator bem ensaiado e instantes rápidos de adolescentes a cair a dormir, há a brutalidade da terra sobre um caixão e a cerimónia ritualista que precede esse fim. Wiseman em nada nos influencia com mecanismos cinematográficos, mas deixa que o espetador seja levado numa montanha-russa de reações pessoais que serão únicas a cada espetador.

O PIOR: As passagens pelos campos agrícolas são belas, mas cansativas depois de várias repetições. Dentro da oeuvre de Wiseman, este é um dos poucos exemplos de um filme cujos ritmos parecem escapar ao controlo do cineasta.

CA

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