DocLisboa | The Waldheim Waltz

DocLisboa ’18 | The Waldheim Waltz, em análise

The Waldheim Waltz”, um documentário sobre Kurt Waldheim e as eleições austríacas de 1986, foi o filme que abriu em grande a presente edição do DocLisboa.

Um passeio breve por qualquer escola do nosso país, quer seja básica ou secundária, provavelmente incluiria o testemunho de uma das mais irritantes incompreensões estudantis imagináveis. “Por que razão estudamos História? Para que é que serve?” é o que muitos se parecem perguntar, mesmo quando enveredam pelo caminho das Humanidades. O pior é que não são só as pequenas massas de hormonas em ebulição a que chamamos adolescentes que se mostram incapazes de entender a importância da História. Uma semana passada a ver e ler os noticiários e alguns programas de opinião pública depressa tornaria claro que a ignorância histórica e a falta de importância que lhe é dada constitui uma doença generalizada na nossa sociedade.

A História ajuda-nos a compreender o mundo em que vivemos, os valores em que acreditamos e a entender ciclos históricos que parecem destinados a repetir-se ad nauseum. Afinal, como podemos evitar repetir erros históricos se não temos conhecimento sobre esses factos do passado? Certamente esta é uma resposta redutiva e limitada, para além de muito cliché, face a este problema, mas não deixa de ter uma considerável razão. Atualmente, estar a par das notícias mundiais é estar a ver uma reposição dos grandes hits noticiários das décadas de 30 e 40 do século passado, com a ascensão de movimentos fascistas e líderes ditatoriais que chegam ao poder com o apoio popular. O pior, é que nem é preciso recuar até tão longe para vermos a repetição de ciclos viciosos de medo, intolerância e violência.

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A realizadora participou em algumas das manifestações apresentadas no filme.

Em “The Waldheim Waltz”, a cineasta vienense Ruth Beckermann examina o ciclo histórico através de uma situação complicada que ela própria testemunhou em primeira mão. Referimo-nos, pois claro, às eleições presidenciais austríacas de 1986, em que Kurt Waldheim, antigo Secretário-Geral das Nações Unidas foi acusado de ter sido um oficial nazi potencialmente envolvido em crimes de guerra. Foram feitas revelações insólitas, historiadores condenaram moralmente o candidato e a visão que Waldheim tinha exposto na sua autobiografia foi considerada uma tentativa de manipular factos. Pela sua parte, o candidato alegou que não tinha memória dos acontecimentos e, no fim, acabou mesmo por ganhar, tendo sido presidente da Áustria até 1992.

Convém dizer que o horror patente nesta história não devém somente da ideia de um homem chegar a cargos de tão grande poder depois de ter ativamente participado em alguns dos maiores crimes contra a Humanidade alguma vez testemunhados. A grande pestilência que salta do ecrã e nos consome o espírito vem sob a forma da reação pública às acusações, algo que se reflete de modo alarmante no clima político da atualidade. Afinal, muitos foram os austríacos que se recusaram a indagar sobre o passado de Waldheim no início dos procedimentos. Mais tarde, tentaram desculpá-lo quando a sua culpa se mostrava difícil de negar, ou ainda demonstraram que culpado ou não, isso pouco lhes interessava.

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O máximo horror vem quando a vitória de Waldheim se avizinha e a máscara da moralidade e bons costumes cai, deixando a descoberto antissemitismo virulento de uma sociedade que, longe de se indignar com a possibilidade de um Presidente nazi, aparenta gostar da ideia. A certa altura, Beckerman mostra-nos imagens de reportagens feitas nas ruas de Viena durante as últimas semanas da corrida presidencial. Aí, vemos duas mulheres discutirem aos gritos com uma das manifestantes. Elas falam de como Hitler tinha de ir à Áustria e de como ele trouxe indústria e empregos. Ele pode ter feito muita coisa má, mas acertou as contas do Estado. Qualquer português atento estará já a sentir um calafrio a correr a espinha, pois quem já não ouviu semelhantes retóricas da boca de defensores nostálgicos do salazarismo?

Os paralelos não se ficam por aí. Se saltarmos dos devaneios lusitanos para o palco sociopolítico global da atualidade, então a relevância do caso Waldheim torna-se doentiamente claro. Como é possível não pensar nas palavras de Donald Trump depois dos confrontos entre neonazis e antifascistas em Charlottesville quando Waldheim fala de como de ambos os lados do conflito na 2ª Guerra Mundial houve tristes perdas e tragédia? A cordialidade untuosa da interrogação pública do filho de Waldheim não lembra os Senadores Republicanos a se dirigirem ao Juiz Kavanaugh depois de interrogarem a Dr. Ford? Todos os argumentos populares que dizem que Waldheim é boa pessoa porque é católico, não recordam as palavras de tantos brasileiros que veem o cristianismo praticante de Bolsonaro como selo de aprovação máximo?

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A História é feita de movimentos cíclicos.

Beckermann nunca usa imagens da contemporaneidade para estabelecer ligações. Ela simplesmente nos mostra uma tapeçaria de documentação histórica, incluindo as suas próprias filmagens, e deixa ao espectador o papel de entender as repercussões e repetições dos fenómenos patentes na vitória de Waldheim. De facto, a cineasta chama a atenção para as limitações e para o poder do ato documental. Numa instância ela fala de como, em situações assim, ou se participa no protesto, ou se filma, sublinhando a natureza passiva do cineasta no meio destes acontecimentos. Por outro, ela usa o exemplo de “Shoah” para destacar o potencial do cinema para moldar opiniões e fazer as pessoas acordar para o pesadelo da realidade.

“The Waldheim Waltz” não chega aos calcanhares da obra-prima de Claude Lanzmann, mas há que admirar a contenção de Beckermann e a precisão da sua montagem. Sem nunca forçar a mão, ela constrói um devastador exposé sobre um escândalo nacional. Para além disso, o filme leva o espectador a ponderar sobre o reflexo que o passado faz do presente e do futuro. Não se trata de uma meditação sobre o ciclo da História, mas sim de um alerta urgente. Para entendermos os erros e os crimes do agora, temos de entender os de antes e compreender o lugar que, enquanto sociedade, estamos a esculpir para nós mesmos na História do Mundo e da Humanidade. É algo difícil de admitir, mas estamos sempre a dançar esta valsa de Waldheim, sempre a repetir a mesma coreografia. Já era assim em 1939 e em 1986 e assim continua a ser em 2018.

The Waldheim Waltz, em análise
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Movie title: Waldheims Walzer

Date published: 19 de October de 2018

Director(s): Ruth Beckermann

Genre: Documentário, 2018, 93 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO

Ao nunca estabelecer ligações demasiado rígidas com exemplos da atualidade, Ruth Beckermann constrói um documento intemporal e sempre relevante sobre o escândalo da eleição de Kurt Waldheim. O filme tem tanto a dizer sobre o ciclo vicioso da história como das tendências fascistas que estão ainda presentes no organismo da sociedade ocidental como um cancro que recusa desaparecer. Formalmente, não é um documentário, muito inovador, mas tem a precisão de um bisturi nas mãos de um cirurgião de renome internacional.

O MELHOR: A montagem exímia dos últimos minutos, especialmente a escolha de derradeiras imagens, é um triunfo e um grito assustador a alertar os espetadores no cinema.

O PIOR: O convencionalismo do projeto em termos de forma e estrutura assim como a presença diminuta das reflexões da realizadora. A narração quando se manifesta é sempre interessante, mas parece que a cineasta tenta não tornar o filme num documento da sua experiência pessoal. Tal escolha tem os seus méritos, mas é difícil não ter curiosidade em ver um filme mais descaradamente pessoal e talvez mais expressivo na sua indignação.

CA

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