DocLisboa ’25 | With Hasan in Gaza – Análise
Uma das falsidades mais prevalentes sobre o conflito no Médio Oriente é que os atos genocidas israelenses sobre a população da Palestina começaram como resposta ao 7 de outubro de 2023. No entanto, basta fazer alguma pesquisa, ler sobre a fundação de Israel e a Nakba de 1948, sobre a limpeza étnica que pessoas como o historiador israelita Ilan Pappe apontam há anos, para perceber como isso é mentira. No cinema contemporâneo, a maioria dos artistas que pretendem retratar a ignomínia deste genocídio tende a focar-se no agora por razões óbvias. Contudo, há valor em olhar para trás e refletir sobre a continuidade da violência ao longo dos anos.
Parte do que fez com que o Oscarizado “No Other Land” fosse tão impactante deveu-se ao seu foco na Cisjordânia antes de 7 de outubro, seu retrato da existência do povo da Palestina em traços sisífios. Nesse documentário, a natureza cíclica das indignidades e crimes perpetrados ou incentivados pelo estado israelita comunicou como esta triste realidade dura ininterruptamente há décadas. Outros trabalhos têm explorado as mesmas ideias, ora através da reflexão presente – “The Settlers” de Louis Theroux – ou da investigação com base em imagens de arquivo – “Israel Palestine on Swedish TV 1958-1989” de Göran Hugo Olsson.
Nada disto começou a 7 de outubro.
Kamal Aljafari vai mais longe, contudo, propondo a mostra de filmagens antigas sem grande mediação moderna. O ano passado, “A Fidai Film” exemplificou esta abordagem do realizador palestino num exercício de recuperação fílmica e restauro, recriação experimental para contrariar a perda de memória e registos históricos. Essa fita centrou-se na incursão israelita contra o Centro de Investigação Palestiniano de Beirute em 1982. Seu mais recente trabalho, “With Hasan in Gaza”, rebobina menos na linha cronológica do conflito, retratando uma viagem que o realizador fez em novembro de 2001, quando foi a Gaza em busca de um antigo prisioneiro.
Tê-lo-á conhecido em 1989, quando estavam na mesma prisão israelita, durante a primeira intifada. Em 2001, não há como se reencontrarem, mas Aljafari tenta, perdendo-se numa busca Beckettiana na Cidade de Gaza. Por muitos anos, as filmagens estavam perdidas, mas a redescoberta de três cassetes possibilitou a criação de “With Hasan in Gaza”, sendo Hasan Elnboubou o guia que ajudou o cineasta na sua procura infrutífera. Dito isso, o filme não começa com o registo de uma pequena câmara de vídeo que define muita da sua forma. Ao invés, inicia-se com um poema lido sobre escuridão e estática, descrições do sangue jorrado pelos palestinos em lamentação lírica.
Este prólogo em estilo poético serve para contextualizar as imagens seguintes, como que lhes dando a qualidade de um filme de fantasmas. Afinal, muitas das pessoas que aparecem diante da câmara já morreram violentamente, e a Gaza aqui registada não é mais do que ruínas, cinzas e terra queimada na atualidade. Talvez por isso, Aljafari tenha decidido escolher a imagem de uma estrada vazia para realmente dar início à viagem cinematográfica, posicionando o espectador num panorama de ausências antes de o levar numa odisseia através de pontos fronteiriços e pressões militares, para dentro de uma Gaza que já só existe na memória.
Qual Resnais ressuscitado, o realizador puxa pela qualidade ativa no seu espectador, exigindo o diálogo entre a imagem no ecrã e o que cada um sabe passar-se hoje nos sítios retratados. Dito isso, o valor do filme não está apenas nessa comparação implícita entre passado e presente. Falei da continuidade do genocídio e “With Hasan in Gaza” mostra isso, revelando a opressão do projeto colonial israelita como algo omnipresente na vida dos palestinos. Uma simples passagem pela praia, tantas vezes interdita, dá-nos a conhecer crianças moldadas pela ocupação e pais que falam das saudades que tiveram dos filhos quando estavam retidos em prisões israelitas.
Numa sequência aflitiva, soldados israelitas tentam impedir a filmagem, inadvertidamente corroborando o valor de se testemunhar estas injustiças e preservá-las em forma de filme. Noutras ocasiões, vemos campos baldios onde antes estavam casas e Hasan descreve as demolições cíclicas levadas a cabo pelas forças armadas de Israel. Até se apela à memória de árvores destruídas, à lembrança de plantar tomates no mesmo sítio em que a câmara reconhece um cenário digno de histórias pós-apocalípticas. E durante tudo isto, o som de disparos e explosões é constante, e crianças correm pelas ruas com estilhaços de bombas nas mãos.
Pela noite, a situação piora e quase desejamos um regresso ao crepúsculo em Rafah, uma visão digna de postal ou de um elogio fúnebre. De ouvidos atentos ao que se passa lá fora, a população local consegue distinguir se as explosões são de armas palestinas ou israelitas, tão constante é a cacofonia. Alguma da imagética mais arrepiante surge quando, perante a ameaça de artilharia, Aljafari e sua câmara se refugiam no espaço doméstico, nas divisões mais interiores, incluindo um quarto de crianças que há muito abandonaram a casa. Mesmo assim, é impossível escapar ao som e só não é pior porque Israel está distraída com um jogo de basquetebol importante.
O documentário é uma história de fantasmas.
Tirando o poema inicial, o maior contexto dado surge 25 minutos depois que o filme começa, quando algumas palavras de Aljafari aparecem escritas sobre o vídeo. Trata-se de relatos sobre a brutalidade do seu aprisionamento aos 17 anos, textos diarísticos repletos de detalhes dolorosos. O mais revelador destes excertos aparece perto do fim, uma recordação da Passagem de Ano de 1989 para 1990, uma noite em que o adolescente encarcerado se apercebeu de como já não conseguia imaginar o mundo fora da prisão. A vida tornou-se na sua prisão e, mesmo depois de libertado, aquela cela partilhada por quarenta almas assombrará Aljafari para sempre.
Esse é o fado partilhado por inúmeros palestinos, incluindo o homem cuja busca define a forma de “With Hasan in Gaza” e que o realizador jamais conseguiu rever. Na sua simplicidade, o documentário ganha poder, especialmente no fim, em casa de Hasan, com a câmara nas mãos de adultos para miúdos e Aljafari pela primeira vez em cena. São estas as imagens que impressionaram Locarno aquando da estreia mundial, em Toronto, Nova Iorque, e agora assombram o DocLisboa como seu filme de abertura. É um início pesado para aquele que promete ser um dos festivais mais importantes do ano, tanto pela dimensão política do seu programa quanto pela inovação formal das obras. O futuro do cinema será traçado pelo documentário e pelo experimental.
With Hasan in Gaza
Conclusão:
- Há 24 anos, a câmara de Kamal Aljafari percorria a Faixa de Gaza em busca de um antigo companheiro de prisão que o realizador jamais reencontrou. Ao mesmo tempo, essa odisseia de dois dias em Novembro de 2001, aparece registada em três cassetes como a procura por beleza e vida, humanidade exultada nas paisagens de uma Palestina desolada. Em diálogo com o presente estado do mesmo lugar, “With Hasan in Gaza” canta uma lamentação implícita e parte-nos o coração.
- O filme continua o projeto do realizador palestino e sua pesquisa sobre o uso de filmagens antigas, arquivos e documentação histórica para criar um cinema elegíaco. Trata-se de um objeto poderoso e ótima escolha para dar início a mais uma edição do DocLisboa, onde questões políticas são levantadas e discutidas abertamente ao invés de ignoradas como tanto acontece em círculos de cinema mais mainstream.