LEFFEST ’16 | Dogs, em análise

Dogs, a primeira longa-metragem de Bogdan Mirica, é um impiedoso thriller romeno com uma série de elementos tirados diretamente do western americano.

dogs Câini leffest

Na última década, O Novo Cinema Romeno tem-se vindo a afirmar como a mais importante vanguarda cinematográfica no panorama europeu e seus códigos estilísticos e temáticos têm, por consequência, vindo a delinear-se com cada vez mais claridade sem, apesar de tudo caírem na rigidez dogmática de outros movimentos semelhantes. Exemplo dessa mesma flexibilidade é Dogs, a primeira longa-metragem realizada e escrita por Bogdan Mirica. Aqui, longe de estarmos no reino do realismo social de longos takes que tentam telegrafar os ritmos naturalistas da vida na Roménia contemporânea temos algo mais próximo da experiência de género, mais especificamente, Dogs é uma espécie de western revisionista made in Romania.

Um ponto de união entre este filme e os seus irmãos mais realistas é, sem dúvida, o tema do passado e sua influência no presente. Aqui, esse passado não toma tanto a forma da ditadura comunista – apesar de ela ser mencionada, afinal estamos a falar de um filme Romeno – mas sim de uma história de crime e violência tão forte e longa que está praticamente impregnada na terra onde decorre a maioria da ação. A primeira imagem do filme, um deslumbrante plano que sobrevoa as águas turvas de um riacho e sua flora, telegrafa essa mesma realidade em que o passado violento está sempre à beira de se revelar, sendo que esse referido plano termina com um pé decepado a emergir dessa mesma superfície fluvial.

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A terra que tanta agressividade humana testemunhou, alimentou e absorveu é uma propriedade árida junto à fronteira com a Ucrânia que foi recentemente herdada por Roman, um jovem citadino. Pouco a pouco, ele vai descortinando que o seu avô, antigo proprietário da terra, era o chefe de uma organização criminosa, e seus subalternos ainda passam as noites a rasgar a escuridão com os faróis dos seus carros quais sentinelas a marcar a execução de atos criminosos. Quando se sabe que Roman planeia desfazer-se da terra, vendendo-a, o caos sanguinário começa a abater-se sobre ele e aqueles que com ele colaboram, sendo que o pé no riacho é apenas o princípio de uma torrente de inimaginável violência que é resignadamente observada por Hogas, um envelhecido polícia que passou a vida a desviar o olhar de tais injustiças e agora está a morrer de cancro.

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Acrescentamos a este duo um terceiro elemento na forma de Samir, o novo senhor do crime da região e um verdadeiro monstro criminal de agressividade animalesca, e é fácil entender por que razão críticos de todo o mundo já estabeleceram uma constrita ligação entre este filme e Este País Não é Para Velhos dos irmãos Coen. A direção de Mirica certamente não afugenta tais comparações, com a sua câmara focada nas planícies de erva amarelada e poeira infértil de modo a sugerir as estéreis planícies desertas dos westerns americanos e dessa obra-prima revisionista em particular. O dedilhar de uma guitarra na banda-sonora apenas exacerba mais essa ligação mas, há que se dizer, Dogs, para seu benefício e detrimento, está bem longe de ser um filme assinado pelos Coen.

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Algo que se torna bastante claro 20 minutos dentro do filme é que estamos perante uma obra que, apesar de utilizar uma base narrativa estruturada à volta de três personagens centrais, sofre de uma diabólica anemia no que diz respeito a definição e desenvolvimento de personagem. Roman, em particular, que deveria ser a presença mais bem definida do filme, servido de sua âncora, é pouco mais que uma abstração ou uma ferramenta puramente mecânica. Quando a tragédia se começa a abater sobre ele é difícil ver aí algo mais que um exercício cinematográfico em criar imagens violentadas e momentos de tensão. O trabalho sólido mas genérico de Dragos Bucur no papel central não ajuda o filme, mas a culpa recai grandemente no guião subdesenvolvido.

Não tão amaldiçoado pelo texto como o seu colega, Gheorghe Visu constrói em Hogas a mais fascinante presença do filme, sendo que é um pequeno crime cada vez que Mircia se distancia da sua narrativa secundária em prol da história de Roman. Essencialmente, Visu está a interpretar uma versão romena de Tommy Lee Jones, com um pouco de cansaço acrescido e a cavar-lhe as faces numa imagem quase cadavérica. É precisamente na sua pessoa que o humor negro típico do cinema romeno atual marca a sua presença, incluindo numa insólita sequência em que o pé do início é autopsiado com garfo e faca à mesa de jantar. É na integridade transparente do retrato de Visu que este momento triunfa e não se revela apenas uma afetação superficial e, de modo semelhante, é na complexidade humilde do trabalho deste ator que o final consegue ter algum valor para além de um final uivo de angústia misantrópica.

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Pela sua parte, Vlad Ivanov, uma figura já conhecida a quem quer que siga o cinema romeno com alguma atenção, dá o seu melhor para trazer a essência maligna de Anton Chigurh a um novo contexto. No entanto, é um pouco erróneo compararmos o trabalho de Ivaniv com o de Javier Bardem, sendo que Samir é uma criatura muito menos calma reptileana que a personagem que valeu ao ator espanhol um Óscar. Dado a inesperadas e injustificáveis explosões de violência assassina, Samir é uma figura caracterizada pela sua demência e irracionalidade, sendo que a sua mera presença impõe uma atmosfera de sufocante tensão á ação. Não é um retrato que prima pela complexidade ou mesmo pelo realismo mas sim uma apropriada continuação da abordagem estilística, formal e desumana que Mirica empregou nesta sua primeira longa-metragem.

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Dogs mostra que o Novo Cinema Romeno ainda pode ter muitos caminhos por onde enveredar sem se desfragmentar em movimentos antagónicos mas não deixa por isso de ser uma obra que padece de grandes fragilidades. Uma delas é a sua anemia narrativa, mas também a sua formalidade está longe de ser revolucionária, sugerindo, de facto, algo mais próximo da condição reacionária. Independentemente dessas ponderações negativas, a polidez e eficiência mecânica do projeto marcam o seu realizador como um dos nomes a ter debaixo de olho nos próximos anos. Dogs não é uma estreia perfeita, mas é bastante promissora de possíveis glórias futuras.

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O MELHOR: As prestações antagónicas de Gheorghe Visu e Vlad Ivanov. O seu stand-off final poderia quase ser apresentado como uma masterclass de atuação.

O PIOR: A personagem subdesenvolvida de Roman, cuja centralidade narrativa acaba por ser um terrível abalo para com um filme que, por consequência, fica com um frágil vácuo no lugar onde deveria ter uma sólida espinha dorsal.



Título Original:
Câini
Realizador: Bogdan Mirica
Elenco:
Dragos Bucur, Gheorghe Visu, Vlad Ivanov, Raluca Aprodu

LEFFEST | Drama, Thriller | 2016 | 104 min

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