Downton Abbey, análise do último episódio
A nossa análise de Downton Abbey, último episódio, ou o Sonho de uma noite após o Natal.
Desde há cinco anos que, um pouco antes do Natal, a série da BBC Downton Abbey tem feito a sua aparição nos ecrãs de tv oferecendo-se, de acordo com o espírito da época, como uma sobremesa esplêndida, um repasto de sonhos doces de uma sociedade equilibrada, onde todos têm um lugar seguro e compensador. Todos os que vivem em Downton Abbey têm uma função pré-determinada nessa microssociedade, todos conhecem bem o seu lugar e estão bem protegidos nessa bela mansão onde tudo é singular, rico, magnífico, mas onde nem todos têm a certeza do que o futuro lhes poderá trazer.
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Curiosamente, esta versão doce, a evocar uma nebulosa proximidade de corporativismo ideológico em que, utopicamente, os conflitos entre empregado e patrão, entre senhor e criado são suavizados, até à sua negação, foi inspirada em versões antepassadas, muito populares na televisão e no cinema. Referimo-nos à série Upstairs, Downstairs de 1971, e o filme de Robert Altman, Gosford Park, de 2001.
A série Downstairs, Upstairs, produzida especialmente para a BBC, nos anos setenta, durante cinco anos, narrou a história de uma família, no período eduardiano, com raízes aristocráticas e ligações políticas à Câmara dos Lordes, com prestígio de sobra para manter, em Eaton Place, 65, uma mansão com mordomo, governanta e outros criados. Esse era o mundo downstairs, o mundo dos criados, em oposição, ao dos senhores, esses confortavelmente instalados upstairs: uma amostra dos vários mundos em contradição no período eduardiano. Com as suas rígidas etiquetas sociais, herdadas do período vitoriano e das sociedades de corte dos séculos anteriores, Upstairs, Downstairs deu muitos elementos de inspiração aos autores de Downton Abbey, apesar de se centrar em Londres, na cidade portanto, em vez do campo como acontece em Downton Abbey.
São exemplos dessa inspiração: a narrativa de cariz realista presente no rigor da representação das formas de viver dessa época; a referência à classe média emergente numa nova fase do desenvolvimento capitalista; a presença de grandes atores com grandes papéis que se destacam de todo o cast, como foi o caso do mordomo Hudson e da cozinheira Mrs. Bridges em Upstairs, Downstairs.
Em Dowtown Abbey temos tudo isto e muito mais: se temos o mordomo Mr. Carson e a sua mulher Mrs Hughes (a partir da última temporada), temos também a admirável Condessa de Grantham, representada por Maggie Smith, associando-se assim a personagem inesquecível da aristocrata com o talento da grande atriz. Em Upstairs Downstairs estávamos longe ainda das inovações técnicas, paradigmáticas na aproximação do cinema à televisão, beneficiando a série de Julian Fellowes, dos sistemas de Alta Definição em vídeo, do som digital e dos formatos de ecrã que na sua mudança para o formato 16:9 mudariam significativamente a receção da imagem televisiva.
No cinema, o exemplo vem de Gosford Park (2001) de Robert Altman galardoado com vários prémios. O único óscar foi para um dos argumentistas: Julian Fellowes que escreveu o brilhante thriller, contextualizando-o nos anos trinta, no meio aristocrático britânico, evocando a escritora Agatha Christie, pelo enredo policial que o filme inclui. Considerado por muitos como um filme sobre a luta de classes, a obra de Altman apresentava atores soberbos como Maggie Smith (outra vez), Helen Mirren, Ryan Philippe e Michael Gambon, entre outros. Era acima de tudo um produto cinematográfico magnificente não só na narrativa pouco convencional e na mise en scéne , mas sobretudo, na inesquecível representação do espaço: uma mansão rural, onde se estabeleceu, durante um fim-de-semana, uma família e seus criados, representantes de um microcosmos social específico da época e do mundo aristocrático decadente após a Primeira Guerra Mundial, combinando aristocratas falidos, à beira do fim, com criados maldosos e/ou amaldiçoados.
Dirigido pelo grande Altman, americano do coração do Missouri, hippie em Mash, anarquista diletante em O Jogador e em Gosford Park, o filme lançava para o estrelato Julian Fellowes, um gentleman do meio aristocrático britânico, o criador da série Downton Abbey.
Se a princípio Downton Abbey se destinava a ser um spin off de Gosford Park, em pouco tempo a série criou asas e voou. As suas personagens tomaram vida própria e havia quem preferisse Mary a Edith ou vice-versa, torcesse por Branson ou Carson, ansiasse pelas conversas afiadas entre Lady Violet e Lady Isobel, chorasse com a morte do jovem Mathew Crawley e por aí fora. Downtown Abbey com as suas salas majestosas e belas, ricamente decoradas, atapetadas de pinturas valiosas, onde os seus habitantes aristocratas estão sempre maravilhosamente bem-vestidos e bem-penteados, tornou-se um bom exemplo da ética aristocrática que o seu criador tão bem conhece por experiência própria. O escritor, ator e guionista, Julian Fellowes possui a titulatura de barão Fellowes de West Stafford e é membro atual da Câmara dos Lordes.
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O segredo do sucesso desta maravilhosa série é complexo. Por um lado, teremos de contar com os poderes que a televisão nos dá, ao tornarmo-nos voyeurs, ainda que distantes, da aristocracia, observando a sua riqueza e sucesso, enquanto os seus dramas e desgostos parecem facilmente resolvidos pela profunda solidariedade existente entre os membros da família e seus criados, dando assim uma lição de generosidade e amor pelo próximo. Por outro lado, é sem dúvida uma série representativa de uma nova era da televisão onde o pequeno ecrã já não é pequeno e a imagem, som e formato se aproximam do cinema. Cinema televisivo ou vice-versa, mas privado sim, para ver no conforto doméstico e se possível em família.
O último episódio deu numa noite de Inverno. O dia de Natal tinha passado há 48 horas. Ainda se misturavam os odores doces dos bolos e das velas que enfeitam em geral todas as casas nesta época, associando-se ao calor do convívio familiar natalício. Downton Abbey, como num sonho de Natal, foi nesse dia o desfilar de desejos de cada uma das personagens, desejos todos cumpridos. Desde a inimizade que opunha Cora a Violet, Mary a Edith e Carson a Branson. Tudo acabou bem: nasceu o bébé de Anna e de John Bates; Mr Molesley tornou-se professor e Daisy passou nos exames; Mary espera um bébé do seu segundo marido; Edith casa com um riquíssimo Marquês e até a morte recua: Lorde Merton afinal não vai morrer …. Sorrimos.
Acompanhava a série a algum tempo e fiquei sem saber se não passará mais.