"Elemental" | © Disney

Elemental, em análise

“Elemental” é uma nova proposta da Pixar com ímpeto metafórico e animação deslumbrante. Trata-se de uma história de imigrantes e assimilação realizada por Peter Sohn, autor de “Parcialmente Nublado” e “A Viagem de Arlo.” Em exibição nos cinemas portugueses, esta comédia romântica é antecedida pela curta “Carl’s Date,” onde reencontramos algumas das personagens de “Up: Altamente.”

A história de “Elemental” nas bilheteiras tem sido uma montanha-russa, começando por espicaçar o sonho da Pixar com a sua pior estreia de sempre no mercado Americano. Contudo, não será esse o final para uma obra que só agora começa a sua vida além-fronteiras. Más estreias à parte, a performance do filme no box office tem vindo a melhorar de semana para semana, afigurando-se um sucesso improvável que já superou títulos tão amados como os Oscarizados “Soul” e “Encanto.” Talvez a culpa do infortúnio inicial seja da má publicidade. Talvez a causa do triunfo o passa-palavra entre espetadores.

Independente do que está por detrás da situação, não podemos deixar de admirar a persistência de “Elemental.” O filme tem demonstrado uma enorme capacidade para crescer num ambiente onde narrativas originais sem ligação a super-heróis ou outras propriedades icónicas têm cada vez mais dificuldade em vingar. Em certa medida, a fita partilha o fado com um dos seus aspetos mais simbólicos, flor capaz de sobreviver nos ambientes mais agrestes, quer seja na inundação ou no meio do fogo. Não que este seja um exercício em meta-cinema na vaga do intelectualismo. Pelo contrário, trata-se de uma reflexão bem pessoal para o seu autor.

elemental critica disney pixar
© Disney

Nos últimos anos, muitas das animações frutos da Disney e Pixar têm nascido nestes termos, surgindo como expressão dos seus realizadores que muito de si mesmos injetam no projeto. Foi o caso de “Luca,” inspirado em amizades infância de Enrico Casarosa, e também do “Turning Red” de Domee Shi. Em “Elemental,” Peter Sohn encontra oportunidade para explorar a sua perspetiva enquanto parte de uma família imigrante, tendo seus pais viajado da Coreia até Nova Iorque na década de 60. Entre micro-agressões e um sonho-herança, há muita autobiografia aqui, especialmente quando consideramos as fricções de geração para geração.

O conflito cultural informa a temática, mas a forma deve às paixões de juventude, um interesse obsessivo com química aqui manifesto num mundo onde cada indivíduo é formado por força e substância elementar. Existem pessoas feitas de água, seus corpos um contínuo fluxo, infinitamente moldável em estado líquido. A gente do ar afigura-se conflagração de vapor, nuvens multicoloridas movidas por ventos vindos de dentro ao invés de impulso exterior. O povo da terra é solo, rocha e mineral, corpos proliferados por vegetação em jeito de cabeleira. Numa piada meio tosca, a colheita de frutas até serve como substituto para intimidades carnais.

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São esses os habitantes nativos da Cidade Elemento, mas nenhum deles é ponto de identificação para Sohn. Para acharmos o espelho que casa artista à sua arte, temos de considerar as pessoas do fogo, organismos feitos de labaredas capazes de chegar a temperaturas imensas, comedores de carvão em brasa e combustível. Suas origens são em terras longínquas onde se falam idiomas próprios e incompreensivos para gente exterior, costas separadas da metrópole por um vasto oceano. Em prólogo explicativo, testemunhamos um flagelo natural que destrói a nação de origem.

A calamidade força vários desses habitantes fogosos a procurarem guarida noutro lugar, refugiados em desespero por um futuro melhor. Assim acontece com um casal à espera da primeira filha, seus nomes mudados na alfândega e língua abandonada em prol da assimilação. Como a água que prolifera por toda a cidade é letal para quem é feito de fogo, estes imigrantes são forçados a habitar um bairro separado da restante sociedade, um gueto baseado na diferença de elementos. Aí, eles formam casa e comunidade, criando um lar para a menina já nascida na Cidade do Elemento – Chispa.


Ela é a nossa protagonista com personalidade adequadamente fogosa, engraçada sincronia de design e personagem, sua principal característica a raiva que se torna palpável por vias de explosão. Só esse temperamento a impede de herdar a loja do pai, deixando-o livre para a reforma. Mas é claro que, em boa moda do conto-de-fadas moderno, a situação complica-se ainda mais quando, certo dia, um cano rebenta na cave e inunda o estabelecimento. Juntamente com a torrente vem um inspetor na procura de uma qualquer fuga no sistema.

Ele é Nilo, um homem de água com quem Chispa terá de unir forças na esperança de salvar o negócio da família e descobrir como é que a infiltração está a chegar ao bairro do fogo. Pelo caminho, apaixonam-se, só que o amor parece impossível quando o mero toque poderá resultar na evaporação dele, no apagamento dela. Enfim, é uma comédia romântica em tons menores, um trabalho com charme que faz pouco sentido enquanto cosmologia fantasiosa, mas até resulta na base singular da emoção. Por outras palavras, o aparato funciona enquanto comédia romântica e pouco mais.

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O problema é que, na filmografia Pixar, a criação de mundos imaginários sempre foi uma mais-valia muito baseada na habilidade para organizar conceitos loucos em torno de lógicas internas bem conseguidas. “Elemental” acerta no design, só que fraqueja no que se refere à coerência de ideias. Ainda para mais, a metáfora central é dúbia, talvez até auto-contraditória apesar das boas intenções. Nesse sentido, partilha alguns vícios com a “Zootrópolis” dos Estúdios Disney. Entende-se com clareza que as barreiras elementais servem para espelhar xenofobia e racismo no nosso mundo, a realidade fora do ecrã.

Vários momentos fazem alusões descaradas a sistemas segregadores e preconceitos culturais – desde a comida picante até à suposição que imigrantes não sabem falar a língua local. Pesquisando a concretização da gente do fogo, encontramos a formulação feita com base num apelo ao contraste entre oriente e ocidente. Isso acontece no patamar textual, no elenco, na imagem e até na música que sempre caracteriza a gente do fogo com uma sonoridade multicultural, perdida algures nas polaridades do sudeste asiático.

elemental critica disney pixar
© Disney

 Simbolizar a hierarquia social através de um mundo onde as diferenças são exacerbadas ao ponto do simples toque poder matar é um desastre de moralidades invertidas, inadvertidamente caindo numa retórica próxima do racismo. Não estamos a dizer que “Elemental” promove tais ideais. Esse não é o caso, obviamente. Apenas que a indefinição dos seus valores, a confusão da metáfora superficial, sabota as lições dos cineastas para com o público mais novo. Enfim, o argumento é a parte mais fraca da fita, centralizando ainda o enredo em questões de planeamento urbano meio incompatíveis com as tonalidades leves do conto.

Felizmente, um filme não se faz só de texto. “Elemental” é um milagre de animação engenhosa, usando tecnologias normalmente exclusivas do efeito especial para criar as personagens, grande parte das quais não tem forma fixa. O ar e a água são feitos de simulação de partículas retorcida até se tornar expressividade cartoon, enquanto o fogo define figuras antropomórficas em laivos de luz variada. A Pixar está sempre na frente da inovação, mas até nesse contexto, “Elemental” é um exemplo especial cujas soluções deverão reverberar pelos próximos anos de animação digital.

Também aplaudimos a banda-sonora, belíssima com a sua manta de recortes culturais, leitmotivs e romantismo sem vergonha. Trata-se de um dos melhores trabalhos do compositor Thomas Newman e, num mundo justo, o seu lugar nos Óscares do ano que vem já estaria garantido. Na cena em que a música mais domina, enredo esquecido para se apreciar como o amor floresce em cenário de jardim, “Elemental” atinge o seu maior esplendor. Aquele rebento simbólico abre as pétalas e ilumina a escuridão, aquece-nos o espírito como um beijo terno e faz-nos crer no sentimentalismo mágico. Faz-nos acreditar no amor incandescente de Chispa e Nilo.


Elemental, em análise
Elemental

Movie title: Elemental

Date published: 12 de July de 2023

Director(s): Peter Sohn

Actor(s): Leah Lewis, Mamoudou Athie, Ronnie Del Carmen, Shila Ommi, Wendi McLendon-Covey, Catherine O'Hara, Mason Wertheimer, Ronobir Lahiri, Joe Pera, Matthew Yang King, Reagan To

Genre: Animação, Aventura, Comédia, 2023, 101 min.

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

“Elemental” é mais um triunfo da Pixar no que se refere a animação topo de gama, com avanços tecnológicos em serviço da arte. Contudo, uma história problemática, com laivos de complicação desnecessária, rouba algum valor ao projeto que, mesmo assim, funciona em estilo de comédia romântica. A banda-sonora de Thomas Newman é o remate perfeito para todo o aparato, propondo belezas sónicas que recordam os melhores momentos de “Wall-E.”

O MELHOR: Quando Nilo e Chispa exploram as profundezas de um jardim afogado, música celestial ilustrando o amor nascente enquanto o mundo de sombras se desfaz perante luzes impossíveis.

O PIOR: A metáfora central, sua disfunção ideológica, é o tendão de Aquiles de todo o projeto. Em forma geral, o argumento merece aplausos pela ambição. O resto é só silêncio e apupo.

CA

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