Ensaio para uma cartografia, a diegese de um percurso

Em “Ensaio para uma cartografia” há um mapear de indivíduos e da sua inserção num coletivo. O despojar do supérfluo e o regresso à forma pura cria uma ligação de igualdade e de partilha dentro do palco e com o público.

Somos recebidos informalmente na sala estúdio do teatro nacional D. Maria II. Com o público sentado, entram 21 mulheres com roupas mundanas naquela sala negra. Caso haja alguma tentativa de analisar cada personagem a partir do seu figurino, esta abordagem será rapidamente abandonada. Organizadas sob aquilo que parece ser uma forma arbitrária as atrizes olham em frente e sorriem diretamente para o público. Assim permanecem por breves instantes até que Mónica Calle interrompe o silêncio e apresenta “Ensaio para uma cartografia” sob a forma de manifesto. Esta obra, em constante mutação, é apresentada desde 2014 e assim será até 2021. Ao longo de 7 anos passará por vários espaços onde a própria peça respirará e a qual o tempo reinventará. Inicialmente foi uma obra criada a partir de “Os Sete Pecados Mortais”, de Brecht, e “A Boa Alma”, de Luís Mário Lopes, mas hoje estas influências mostram-se subtis. É um novo espetáculo. O habitual anúncio antes da peça que pede que os espectadores desliguem os seus telemóveis é, no manifesto, modificado. Em “Ensaio para uma cartografia” é-nos antes pedida desculpa caso soframos a tentação de olhar para os nossos telefones durante a performance. Esta situação apenas se coloca caso, nas palavras da encenadora, a tentativa de religação do grupo falhe redondamente. O manifesto é terminado com as pancadas de Molière, mas na verdade, este é o único elemento de teatro clássico de toda a obra.

ensaio para uma cartografia

Começamos então a demanda pela religação entre o coletivo e o singular: o desenvolvimento e procura do ser integro e individual que cada artista representa e a sua inserção no grupo. Trata-se do religar entre o palco, as artes, a luta política da posição do indivíduo na sociedade e o público. As atrizes oferecem a sua roupa ao público, despindo-a e colocando-a no proscenium. Cada uma com o seu corpo diferente, com a sua pele distinta e cada uma celebra a diversidade de forma única e pessoal. A peça explora a constante tentativa de melhoria física e emocional, sem ser proferida uma única palavra. As atrizes dançam, param e repetem o ciclo de movimentos curtos e sucintos consoante as indicações da voz de um maestro fora de cena que conduz os seus músicos. “Ensaio para uma cartografia” é uma constante e exigente superação da tentativa e do erro, cujo objetivo é o da sobrelevação do indivíduo e do grupo. Há um incessante esforço em manter a formatura e a pose mas sem nunca esconder, ou esquecer, o lado humano de atrizes em palco que nunca tiveram formação musical ou de ballet e que em “Ensaio para uma cartografia” tocam a 7ª Sinfonia de Beethoven ou dançam em pontas.

Todo o artifício é negado. Não há figurinos, cenário, adereços e os únicos objetos de cena são aqueles com que as atrizes interagem diretamente: as pontas de ballet e os instrumentos musicais de cordas. Esta negação do espetáculo de atrações permite ao público ligar-se às atrizes, à sua condição humana, real e palpável e não a uma personagem e à adjacente condição ficcional. O espectador é quase hipnotizado pelos movimentos corpóreos das performers, repetidos como mantras ao som de “Bolero” de Ravel, e é puxado para dentro da obra. A envolvência do público é intensificada pelo jogo de luzes: durante todo o espetáculo a plateia encontra-se iluminada por uma fraca, mas quente, luz. Ao não ser marcada uma diferença lumínica entre o público e a audiência a 4ª parede é quebrada e uma noção subconsciente de pertença a um grupo faz com que o público facilmente se relacione com a obra.

ensaio para uma cartografia

“Ensaio para uma cartografia” é um espetáculo orgânico que despoja o supérfluo e que move, literalmente, o público ao som do ritmo da música. A comoção toma conta do espectador e este passou a fazer parte da criação artística coletiva. Sim, a tentativa de religação foi conseguida e se alguém ousou pôr a mão no bolso durante o espetáculo, foi para tirar um lenço de papel e não o seu telemóvel.

A encenação e a cenografia são da autoria de Mónica Calle enquanto e as interpretações estão a cargo de Alexandra Viveiros, Ana Água, Brígida de Sousa, Carolina Varela, Cleo Tavares, Eufrosina Makengo, Inês Pereira, Inês Vaz, Joana Campelo, Joana de Verona, Lucília Raimundo, Mafalda Jara, Maria Inês Roque, Marta Félix, Míu Lapin, Mónica Calle, Mónica Garnel, Roxana Lugojan, Sílvia Barbeiro, Sofia Dinger e Sofia Vitória.

“Ensaio para uma cartografia” é uma coprodução da Casa Conveniente/Zona não vigiada e do Teatro Nacional D. Maria II.

Em cena na sala estúdio do teatro nacional D. Maria II até 29 de Abril, quarta às 19h30, quinta a sábado às 21h30 e domingo às 16h30. Os bilhetes custam 12€, havendo também campanhas e descontos.

A peça está esgotada até ao dia 29, no entanto, caso queiras mesmo ir ver, podes dirigir-te à bilheteira na esperança de ter havido alguma desistência.

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