An Elephant Sitting Still

15º IndieLisboa | An Elephant Sitting Still, em análise

“Da xiang xi di er zuo”, mais conhecido pelo seu título anglófono “An Elephant Sitting Still”, é o primeiro e último filme de Hu Bo, um escritor chinês tornado cineasta. Este épico deprimente, a roçar o miserabilismo, conta a história de um só dia na vida de uma cidade no Norte da China e é um dos filmes mais interessantes em competição de longas-metragens internacionais da edição de 2018 do IndieLisboa.

Não é nada peculiar ver um filme dedicado à memória de alguém. Ver um filme dedicado à memória do seu próprio realizador, pelo contrário, é algo mais estranho. Se esse realizador for somente responsável por este filme singular, então estamos diante de uma raridade mórbida, mas não por isso menos fascinante. Tal é o caso de “An Elephant Sitting Still”, o primeiro filme de Hu Bo, um realizador chinês que se suicidou a seguir a terminar esta obra, tendo ganho postumamente o prémio de Melhor Primeiro Filme da Berlinale. Essa realidade traz um peso acrescido a um filme que, por si só, não é particularmente caracterizado pela leveza de espírito, mas também faz deste projeto um documento de particular interesse.

Ao contrário de muitos outros realizadores que se suicidaram, como Chantal Akerman recentemente, Hu Bo, que tinha 29 anos, só tem este filme em seu nome, pelo que é fácil interpretar isto como um documento do mundo que este homem via e vivia antes de decidir tirar a sua própria vida. Quando tomamos em consideração o foco épico, meio narrativamente maximalista, do retrato social em cena, o projeto ganha uma qualidade um tanto ou quanto aterradora e ao mesmo tempo transcendente. Não há que enganar, com os seus 230 minutos de pura miséria humana, “An Elephant Sitting Still” não é um filme fácil de experienciar, é desafiador, podendo até ser cruel, mas afinal ninguém está aqui a defender que a vida não é cruel.

indielisboa an elephant sitting still critica
“(…)não é um filme fácil de experienciar(…)”

Pelo menos, para os quatro protagonistas do filme, a vida é um poço sem fim de crueldade e miséria. Wei Bu é um adolescente que vive com uma família abusiva e desprovida de qualquer afeto. No dia que é cronicado nesta narrativa de 24 horas, ele causa acidentalmente a morte de um colega ao tentar defender um dos seus amigos, acusado de roubar o telemóvel do rapaz que não chega vivo ao fim do dia. Outra estudante dessa escola secundária é Huang Ling, uma jovem que tem mantido uma relação ilícita com o vice-reitor e que neste dia fatídico vê a sua indiscrição sexual ser feita pública através da divulgação de vídeos na internet. Relativamente longe dos dramas adolescentes, temos Wang Jin, um homem na casa dos sessenta que confronta, não só a morte do seu cão, mas também o facto de que a sua família o quer por num lar. A completar este quarteto de almas perdidas está Yu Cheng, líder de um gangue e irmão do rapaz que Wei Bu inadvertidamente mata. Quando ele entra na narrativa é na cama da mulher de um amigo seu que, quando descobre a traição, se suicida em frente a Yu Cheng.

Tão importantes como as personagens é o ambiente que elas habitam, uma cidade anónima algures no Norte da China, ou, mais especificamente, o modo como Hu Bo filma essa mesma zona urbana. Em primeiro lugar, algo que o espectador verifica de imediato é a geral falta de luz. Este é um mundo de céus perpetuamente cinzentos, onde, mesmo quando não está a chover, o sol nunca mostra a cara. Para além disso, os interiores das casas, escolas e outros edifícios parecem estar isentos de iluminação, de tal modo que, quando a câmara furtiva entra num centro comercial iluminado, o espectador quase sente ter entrado noutro universo. Nesta atmosfera em tons de cinza invariáveis, o desespero da população não só parece palpável, mas é sufocante na sua presença visual.

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Iluminados por luz leitosa e filtrada pela abóbada de nuvens que nunca se dissipa, os intervenientes deste drama mais parecem espectros errantes, cadáveres sem sangue nas veias ou calor no corpo, do que pessoas a viverem o seu quotidiano banal. De facto, toda a cidade parece mergulhada numa aura mortiça, qual carcaça pós-industrial de um centro urbano pejado de edifícios abandonados e fábricas degradadas. A câmara de movimentos flutuantes, que todo o filme captura em longos planos sequência, apenas exacerba a componente meio fantasmagórica do ambiente. Junte-se a isso o uso liberal de minúsculas distâncias focais, resultando em imagens de pessoas desfocadas num mundo degradado ou em faces a flutuar sobre uma imaterialidade esborratada e é como se as personagens fossem espíritos errantes a assombrar um cemitério em forma de cidade.

Tal abordagem requer uma disciplina monumental, especialmente quando nos deparamos com sequências como uma confrontação num telhado durante o crepúsculo em que Hu Bo nunca corta durante 20 minutos, mesmo quando há tiros, ameaças de homicídio, suicídio e a luz do sol vai lentamente dando lugar à penumbra da noite. Mas, como será fácil de imaginar, tal disciplina não vem só do realizador, mas também dos atores e, nesse aspeto, “An Elephant Sitting Still” é bem abençoado. Os quatro protagonistas e todos aqueles em seu redor têm de dar vida a um conto de miséria sem aparente fim, mas nenhum deles comete o erro de abordar a depressão generalizada como algo igual para todos. No final, a tristeza destas pessoas manifesta-se de modos tão numerosos como as pessoas em cena, quer seja em apatia zombificada, uma espécie de raiva ressentida contra o mundo ou mesmo a resignação relaxada de quem já se sente confortável na sua miséria, talvez por que nunca conheceu nenhuma outra realidade.

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“(…)mesmo nas profundezas da angústia, a felicidade não tem de ser uma impossibilidade(…)

Afinal, este é um filme em que personagens se desdobram em discursos que proclamam que a vida é uma miséria, que sempre foi assim e sempre será, enquanto outros gritam ameaças de morte para campos vazios e dizem que o mundo é simplesmente nojento. Não há grande fonte de esperança neste mundo e o futuro é somente uma ameaça da continuação do sofrimento. Mesmo assim, depois de nos embalar e levar à submissão pelo poder acumulativo de horas a fio de miséria humana, Hu Bo parece apontar para a chance de mudança, para catarse ou pelo menos a existência incerta de algo melhor. O elefante do título é a manifestação nunca vista dessa incerteza benigna e, nas últimas passagens deste drama, três dos protagonistas parecem estar a caminho dele, a caminho da possível redenção e fuga da miséria. Não é uma conclusão muito feliz ou particularmente conclusiva, mas sim uma nota final que nos lembra como, mesmo nas profundezas da angústia, a felicidade não tem de ser uma impossibilidade certa.

“An Elephant Sitting Still” será exibido dia 1 de maio na Culturgest, no âmbito do IndieLisboa. Para mais informações e compra de bilhetes, visita o site oficial do festival.

An Elephant Sitting Still, em análise
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Movie title: Da xiang xi di er zuo

Date published: 22 de April de 2018

Director(s): Hu Bo

Actor(s): Yu Zhang, Yuchang Peng, Uvin Wang, Congxi Li

Genre: Drama, 2018, 230 min

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO

“An Elephant Sitting Still” é um filme que parece quase um romance, tal é a sua ambição e uso de mecanismos reminiscentes da literatura. É também um épico de miséria e um retrato poderoso de uma China muitas vezes escondida por detrás de uma fachada de prosperidade capitalista. No final, é também o testamento artístico de uma grande voz criativa que nos deixou cedo demais.

O MELHOR: A construção cénica com a câmara flutuante e a aterradora disciplina formalista de Hu Bo em clara evidência.

O PIOR: O filme é muito tonalmente invariável, o que resulta numa experiência deliberadamente repetitiva e miserabilista. Podemos encarar a duração extrema e esta abordagem como um retrato social e emocional por meio da exaustão e poder cumulativo de uma história, mas muitos espetadores acabarão por desistir do filme antes deste acabar.

CA

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