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Feliz como Lázaro, em análise

Feliz Como Lázaro” maravilhou a crítica internacional no Festival de Cannes deste ano, onde ganhou o Prémio para Melhor Argumento. Agora chega aos cinemas portugueses e está pronto a fazer as delícias de um público aberto aos devaneios fabulísticos da sua realizadora.

Há um tipo de experiência cinematográfica que é tristemente rara. Estamos a ver um filme e não fazemos ideia do que vai ocorrer a seguir, que tipo de registo vai ser experimentado, que imagens maravilhosas vão surgir, que toque de magia nos vai arrebatar. Contudo, sabemos, com certeza absoluta, que algo maravilhoso há de surgir e que vamos ser arrebatados. Trata-se de tipo de experiência que nos embala em deleite cinematográfico e ganha a nossa confiança, mas está sempre a desafiar as expetativas até ao ponto em que o mero ato de ter expetativas deixa de fazer sentido. Num panorama cheio filmes assentes em fórmulas repetitivas e estéticas cliché é muito difícil cair neste encantamento. Felizmente, existem cineastas como Alice Rohrwacher e obras como “Feliz como Lázaro”.

Tudo começa numa noite ruidosa, no que parece ser o seio de uma comunidade de camponeses italianos semelhante àquelas que cineastas como Ermanno Olmi imortalizaram no grande ecrã. A câmara move-se de um lado para o outro com fulgor e excitação, são feitas serenatas à janela e pedidos de casamento há muito esperados. A imagem é granulosa e por muito movimento que haja, temos uma noção da materialidade implacável deste mundo, mesmo que as especificidades temporais e geográficas da sua existência nos sejam difíceis de definir. Talvez estejamos no final do século XIX, mas a lâmpada elétrica numa casa tão pobre remete para uma época mais próxima da nossa. Nada disso interessa para já. O que importa é a noção da comunidade pobre, a textura das suas vidas e a face de inocência angelical que nos vai aparecendo por entre as outras caras queimadas pelo sol.

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Neorrealismo italiano de mãos dadas com realismo mágico.

Essa face pertence ao homem de nome bíblico que dá título ao filme e, de facto, ele parece feliz. Pelo menos, parece estar em paz e contente, talvez em consequência da sua bondade ou de algum tipo de déficit mental a fazer-se passar por inocência. Lázaro não tem pai nem mãe, somente uma avó que já não consegue andar e precisa dos braços fortes do suposto neto para se movimentar. Toda a comunidade parece dar bom uso à força física e ingénua prestabilidade do rapaz, sendo que o tratam quase como um animal de carga com o qual partilham comida, mas não outros confortos básicos. Aliás, quando Lázaro adoece e está a arder em febre, ninguém sacrifica um lugar nas poucas camas que existem para ele repousar. De facto, a própria ideia de que o jovem possa ter direito a descansar num colchão como as outras pessoas é algo impensável e meio absurdo.

Se os camponeses exploram e abusam o pobre Lázaro, mais ainda são eles explorados e abusados pela marquesa que os trata como escravos. A própria Alfonsina De Luna, marquesa e senhora do tabaco, verbaliza esta dinâmica na cena mais tematicamente gritada do filme. Vivemos num mundo em que todos somos explorados e todos exploramos aqueles mais fracos que nós. Assim é a vida e a liberdade é somente uma ilusão que nos faz cientes do suplício das existências que somos forçados a suportar. Ela certamente será especialista neste ciclo de abusos, pois, não obstante a escravidão dos camponeses, estamos em finais do século XX e a marquesa usou o isolamento geográfico e cultural dos seus subalternos para os convencer que a Itália é uma nação feudal e as vidas dos pobres desgraçados pertencem à aristocrata.

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É através do isolamento, da doutrina da ignorância e de uns quantos gestos contabilísticos muito criativos que os camponeses são até impedidos de sair para além dos limites da propriedade. Pela sua parte, Tancredi, o filho mimado da marquesa, olha com asco para a desumanidade da mãe, mas a sua atitude tresanda à indignação de um príncipe que vê a miséria como uma aventura interessante com a qual se divertir por uns dias. Ele convence Lázaro que é seu meio-irmão e toma refúgio num pequeno lar que o camponês inocente encontrou nas montanhas, enquanto inventa uma história de rapto. Esse esquema acaba por trazer o mundo exterior à plantação de tabaco da marquesa e de um retrato etnográfico com rasgos de sátira social e absurdismo cómico, “Lázaro Felice” entra num mundo de simbolismo e fábula, de alegoria religiosa e um surrealismo que cheira a terra molhada e a cidades empestadas por fumo de viaturas velhas.

Há um êxodo e uma queda, um lobo saído de histórias de santos e a dádiva de uma nova vida a um homem bom. Lázaro é esse homem bom e um dia acorda no sopé de uma falésia, sozinho. A casa senhorial da marquesa não é mais que um contentor ruinoso de algumas quinquilharias valiosas e o sol cálido que acompanhava dias de trabalho no campo deu lugar ao ar de um inverno que traz consigo neve e uma nova vida para Lázaro. Não queremos revelar muito, mas fica aqui a insinuação de um milagre que possibilita a ressurreição prometida pelo nome de Lázaro. No entanto tal milagre traz consigo a passagem do tempo e o salto para um futuro incerto e urbano, onde o que poderia ser folclore alienante no resto do filme, se torna numa crítica familiar à sociedade atual e suas práticas desumanas.

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Neste mundo, somos todos vítimas e abusadores.

No meio de isto tudo, Lázaro encontra uma nova casa e o filme encontra novos espetáculos de cenografia tão rudimentar como recheada de detalhes deleitosos. Caras antigas fazem nova aparição na vida deste potencial santo moderno, mas a idade transfigurou-as em novas máscaras que prometem tanto abuso como bondade e grandes doses de desapontamento. Estamos num mundo de realismo mágico filmado com a gramática visual do neorrealismo e a crítica social de um cinema político drenado de especificidade panfletária, fúria ou cinismo. Este é um filme inebriado na inocência de Lázaro e iluminado por essa mesma perspetiva, capaz de achar beleza e sustento até no meio das ervas daninhas que crescem por entre os carris de uma linha férrea feia e abandonada.

Infelizmente, mesmo num mundo em que a bondade de um homem pode fazer florescer compaixão naqueles que o rodeiam e levar a que a música de uma igreja abandone o órgão e flutue pelas ruas em busca de ouvidos merecedores da sua doçura, a ideia de uma pessoa genuinamente boa é uma impossibilidade. O bem e o mal estão nos olhos de quem os vê e há demasiados interesses mesclados na tapeçaria do universo para que a bondade feita em nome de um não seja o abuso de outrem. Há muita imagética e referência religiosa pelo meio desta história de Lázaro, mas é este desespero existencial e espiritual que mais se destaca e transcende os limites da leitura com que o espectador mais casual pode ser confrontado. Há algo de grandioso e cósmico neste conto modesto, algo que tenta dizer muito sobre o estado da Humanidade, mas que, ao mesmo tempo, não ousa denegrir ou julgar quem quer que seja. “Feliz Como Lázaro” é uma canção de embalar humanista, com imagens lindíssimas e prestações astutas que Alice Rohrwacher orquestrou com a criatividade de uma visionária e o virtuosismo de uma mestra da sua arte.

Feliz Como Lázaro, em análise
Feliz Como Lázaro

Movie title: Lazzaro Felice

Date published: 15 de October de 2018

Director(s): Alice Rohrwacher

Actor(s): Adriano Tardiolo, Alba Rohrwacher, Sergi López, Luca Chikovani, Tommaso Ragno, Nicoletta Braschi, Agnese Graziani, Natalino Balasso, Daria Pascal Attolini, Davide Denci, Carlo Massimino

Genre: Drama, 2018, 125 min

  • Cláudio Alves - 92
92

CONCLUSÃO

“Feliz Como Lázaro” é um golpe de génio em termos de flexibilidade tonal, começando como um retrato neorrealista de camponeses, transformando-se em fábula e alegoria religiosa e em sátira social urbana sem nunca parecer incongruente ou mostrar sinais de esforço. Trata-se de um exemplo de humanismo cinematográfico traduzido por mecanismos do realismo mágico. É belíssimo e comovente, um dos melhores filmes do ano.

O MELHOR: A fuga da música.

O PIOR: Todo o discurso crítico em volta do filme que parece decidido a tornar o talento de Alice Rohrwacher numa simples destilação do trabalho de outros cineastas como o já mencionado Olmi, os irmãos Taviani, Scola e Pasolini entre muitos outros.

CA

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