71º Festival de Cannes (7): Mulheres, Actrizes e o Circo
Uma adolescente transexual que se esforça para se tornar uma bailarina clássica. O retrato de três actrizes, o circo de Carlos Diegues que é uma metáfora do Brasil de hoje e uma cartilha de como um homem pode chegar a santo, da italiana Alice Rohrwacher. É o resumo destes dias dos filmes da Selecção Oficial.
É tão difícil uma primeira obra ser tão absolutamente empática com a crítica e os espectadores que tiveram a sorte de estar na projecção, como esta “Girl”, do belga Lukas Dhont, mais um dos excelentes filmes da secção “Un Certain Regard”. O realizador usou a disciplina e o rigor do ballet clássico para contar a história de um adolescente transgénero e do relacionamento com o seu corpo em crescimento e a sua vontade de mudar. Lara, de quinze anos de idade — numa tremenda e fascinante interpretação do jovem Victor Polster —, mostra uma serenidade quase imperturbável e uma capacidade de aguentar os pés ensanguentados cheios de dor e os músculos retesados, aos gritos de crueldade involuntária dos seus colegas da escola de ballet; ao mesmo tempo que o corpo o traí nessa necessidade de se tornar uma bailarina perfeita.
“Girl” é um ensaio de enorme sensibilidade e emocionalmente persuasivo sobre a determinação de Lara em alcançar os seus sonhos e objectivos, contra todas probabilidades de êxito. Polster, um bailarino treinado de 16 anos, com um físico parecido com o de uma ‘silfíde’, é arrasadoramente convincente no papel. Lara é excelentemente equilibrada, reservada e adulta, com o mundo que a rodeia, até mesmo com o apoio do pai sozinho (Arieh Worthalter), e de uma mãe ausente, da qual nunca sabemos o que aconteceu. Lara funciona como a mulher da casa. Um filme espantoso que vai fazer um percurso inesperado.
“Lazzaro Felice”, da italiana Alice Rohrwacher (“O País das Maravilhas”) é uma estranha história de uma elevação à santidade, sem milagres, sem poderes ou super-poderes e, sem efeitos especiais. è tudo muito natural como as ervas daninhas que matam a fome. Foi muito aplaudido, ainda mais porque a realizadora dedicou o filme e os paluasos ao realizador Ermanno Olmi, falecido recentemente e que esta considera um mestre, aliás como todos nós que andamos nisto. “Lazzaro Felice” é um filme simples e despretensioso — o júri ecuménico estava na sala e passou pela passadeira vermelha — que demonstra a acima de tudo a forma de estar no mundo do jovem Lazzaro (o estreante Adriano Tardiolo é um genuíno santo, de olhar puro e límpido); é , e na elipse narrativa e temporal do filme, um figura que como o seu homónimo do Novo Testamento, voltou ressuscitado dos mortos: Lazzaro levanta-te e anda! Mas é também um filme sobre como ter fé nos seres humanos sem nunca pensar na maldade. Lazzaro é também uma imagem de São Francisco de Assis, o protector dos animais e da história de um lobo que salva os homens (e Lazzaro), em vez de os comer como no Capuchinho Vermelho. “Lazzaro Felice” é um filme que evoca a bondade como conceito e regra de vida. É ao mesmo tempo um manifesto político, um conto de fadas meio religioso, uma parábola, um filme proletário, uma canção da Itália e dos seus conflitos sociais dos últimos cinquenta anos.
Uma famosa atriz iraniana recebe no seu telemóvel um vídeo perturbador de uma jovem rapariga implorando ajuda para escapar da sua família conservadora, que não a deixa seguir o seu sonho de um dia ser igualmente comediante. Este é o ponto de partida de “3 Visages”, do iraniano Jafar Pahani, que vai com a sua amiga actriz ajudá-la a entender se isso é ou não uma manipulação. Juntos, e por uma estrada bastante sinuosa, tomam o caminho para a aldeia da rapariga nas montanhas remotas do Noroeste do Irão, onde as tradições ancestrais continuam a ditar a vida local e se fala azeri. Esta ideia de “3 Visages”, parece ter atravessado a vontade de Pahani — ainda proibido de sair do Irão, mas com mais liberdade para filmar — de voltar à história do cinema iraniano, e à censura que havia de alguma forma atrapalhado os seus artistas, de formas diferentes, em momentos diferentes. E então fá-lo com subtileza com esta ideia de evocar três gerações, passado, presente e futuro, através de três retratos de três personagens/atrizes: no papel principal está Behnaz Jafari, uma atriz famosa no Irão, vimo-la em muitos filmes como, “O Quadro” (2000), de Samira Makhmalbaf, e protagoniza muitas séries de televisão populares da televisão iraniana. A segunda maior personagem feminina do filme, é interpretada por uma rapariga que o realizador conheceu por acaso na rua. Parece ter ficado convencido que a jovem Marziyeh Rezaei era feita para este papel; a terceira é uma grande estrela da história do cinema iraniano, Shahrzad (seu nome verdadeiro, Kobra Saeedi), que já esteve proibida de fazer filmes e vive agora por opção numa casa isolada do mundo. O filme procura mostrar a forma como as atrizes/mulheres sempre foram vistas com desprezo e como as ‘má-da-fita’, antes e depois da revolução islâmica. Um dos objetivos de Panahi em “3 Visages” é precisamente enfatizar e desmistificar esta ideia e quanto as actrizes eram e são importantes, verdadeiras artistas e devem ter as mesmas condições que os homens. Ao construir estas três histórias não é por acaso que a imagem mais recorrente do filme é o percurso pela estrada estreita e sinuosa, como se fosse uma representação concreta de todas essas limitações que impedem as pessoas em geral no Irão, homens e mulheres de viverem e evoluírem.
“O Grande Circo Místico” é a 18ª longa metragem de Carlos Diegues, um das figuras mais importantes do cinema e da cultura brasileira. É filme inspirado no poema de Jorge de Lima e na extraordinária música composta por Chico Buarque e Edu Lobo. Há a famosa coreografia do Ballet de Curitiba, de Carlos Trincheiras que foi um êxito em Portugal nos anos 80. O filme conta a história de cinco gerações de um circo dirigido pela mesma família Kieps. Desde a inauguração do circo em 1910, até os dias de hoje, com a ajuda de Célavi (Jesuíta Barbosa), um perfeito mestre de cerimónias, conta as aventuras e os amores imorais da família Kieps, desde seu apogeu até a sua decadência, culminando numa surpresa final. “O Grande Circo Místico” é um filme onde a realidade e a imaginação se unem num universo do realismo fantástico, do musical ou da opereta, em grande parte graças ao excelente trabalho de direcção artística, aos muitos cenários naturais de lugares e das ruas das cidade de Lisboa — e do Circo Victor Hugo Cardinali —, e pela bela fotografia de Gustavo Hadba. O filme foi praticamente todo rodado em Lisboa pois é uma co-produção internacional com a Fado Filmes de Luis Galvão Teles. “O Grande Circo Místico” é na verdade mais um filme do veterano realizador Carlos Diegues, que tal como nos seus filmes anteriores mostra-se um verdadeiro pensador do Brasil e de suas particularidades como grande país da América Latina. “O Grande Circo Místico” é também um filme de uma espantosa ironia e uma obra fundamental para entender o Brasil de hoje, a sua sociedade, as suas perspectivas sociais e políticas. O eterno Jesuíta Barbosa (Célavi), num extraordinário papel de mestre de cerimónias, parece ser uma metáfora e um figura que nos mostra que o grande circo é no fundo o Brasil actual, com a sua desorganização social, violência e grandes casos da corrupção política. O elenco brasileiro é de luxo com António Fagundes, Bruna Linzmayer, Juliano Cazarré, Marcos Frota, Mariana Ximenes e onde se incluem os poetugueses Nuno Lopes e Luisa Cruz e o francês Vincent Cassel, como special guest star. Resumindo “O Grande Circo Místico” é um filme muito bonito e poderoso, tem apenas um senão no que diz respeito à maioria das cenas de sexo que são violações e abusos — tal como tem sido ‘abusado’ o povo brasileiro — e assim talvez um pouco politicamente incorretas sobretudo quando o #MeToo, está aqui tão presente no Festival.
José Vieira Mendes (em Cannes)