FEST ’23 | Crows Are White, em análise
No FEST – New Directors | New Films Festival, “Crows Are White” sagrou-se campeão das audiências, garantindo o seu voto para ganhar o Prémio do Público. O documentário de Ahsen Nadeem começa por explorar um mosteiro budista antes de se transformar numa meditação pessoal, comovendo com sua honestidade. Foi este o projeto que o realizador estreou no SXSW em 2022, correndo meio mundo no circuito dos festivais antes de chegar a Portugal, a Espinho. Além deste recente Prémio do Público, também já conquistou honra para a Fotografia em Savannah, troféus para Melhor Documentário em Bergen, Atenas, Bali e outros que tais.
Algures no Japão, em arredores de Quioto, o sagrado Monte Hiei serve de casa a uma seita budista onde a resiliência é tida como veículo à divindade. O sofrimento físico é especialmente exultado, assim como a resiliência da pessoa perante essa provação. Lá no alto, onde a bruma domina e o mundo exterior esvanece sob a cortina de névoa, os monges diferenciam-se do comum dos mortais pela sua abnegação. A gente normal é controlada por seus desejos, mas os religiosos de Hiei propõem uma forma de viver em que se renega a vontade do corpo e do coração. Para o destemido Kamahori, estes ensinamentos levaram-no ao presente estado, praticando o Kaihōgyō e assim correndo maratonas todas as noites na procura pelo êxtase da fé.
Quando nos deparamos com este cenário e seus habitantes, estamos no fim de um esforço com já alguns anos, tendo o acesso das câmaras sido causa de conflito. Só com muita pressão e insistência é que o realizador Ahsen Nadeem conseguiu ter acesso aos monges, mesmo que estes não sejam lá muito amistosos para com os seus trabalhos cinematográficos, o olhar pseudojornalístico uma intromissão na vida reclusa. As atenções do cineasta focam-se muito na figura de Kamahori cuja provação poderá culminar em estatuto de Buda vivo, uma aproximação do divino especial até entre os praticantes mais fiéis do mosteiro.
Só que, não obstante o acesso garantido, a cumplicidade nunca se estabelece entre os homens à frente da câmara e aqueles por detrás. Muitos dos monges não sabem como responder às questões de Nadeem e, quando acompanha os exercícios diários, o realizador vê-se confrontado com um muro de silêncio, perguntas acumulando-se até formarem uma montanha pronta para avalanche. Quiçá para dar um fôlego alegre à tensão palpável, uma música engraçada faz-se ouvir a toda a hora, emparelhado com a narrativa cómica num burlesco forçado. Sente-se o desespero no engenho, até que duas violações da regra monástica quebram qualquer laço entre as fações do filme.
O primeiro azar ocorre durante prece diária, quando um toque de telemóvel provoca imensa irritação aos monges desconcentrados, ritos solenes espicaçados pelos sinos eletrónicos da chamada perdida. O segundo evento parece menos calamitoso, mas torna-se no prego que fecha o caixão. Acontece à noite, em filmagem da maratona de Kamahori, quando a luz por cima da câmara ofusca, desenha sombra no chão e, na opinião dos anciãos, provoca o perigo de tropeço. Irados, os monges expulsam Nadeem da propriedade e este vê-se obrigado a infiltrar-se em dias abertos ao público. É numa dessas ocasiões que conhece Ryushin.
Filho e neto de anciãos dedicados em plenitude à norma monástica, o jovem budista é um pária dentro da comunidade, sendo relegado ao trabalho caligráfico bem longe dos restantes monges. Contudo, essa condição deixa-o pronto para ser a ponte entre Nadeem e o templo, não fosse a sua personalidade tão forte que reformula “Crows Are White” e suas putativas intenções. Afinal, como é possível resistir à estranheza brilhante de Ryushin. Ele vive entre o templo e uma casa onde trata do avô afetado com demência, um neto devoto que, apesar de tudo, jamais personifica o ideal do homem mais velho.
Ao invés de meditar no silêncio, Ryushin gosta de ouvir Megadeath e outras bandas metal, sabe falar inglês fluentemente e sonha em criar ovelhas num futuro fantástico. Diz isso sem nunca ter estado em contacto com um dos animais, tendo-se apaixonado no abstrato quando estudava na Nova Zelândia. Também o dogma contra desejos não funciona no mundo de Ryushin, com o pecado glutão sempre a opor-se a qualquer privação em prol do espírito. Aliás, é no vício pelas sobremesas que o monge e o realizador forjam as fundações da amizade, conversando entre colheradas de gelado e conversas existenciais sobre leite creme.
Finalmente, o tom cómico da vertente sónica parece materializar-se em “Crows Are White.” Só que a cumplicidade entre os dois homens acaba por causar a autorreflexão, trazendo as considerações espelhadas do realizador desde as margens do filme até ao seu âmago. Ao contrário do amigo, Ahsen Nadeem não vive confortavelmente com suas contradições. Ryushin diz sentir-se à vontade consigo mesmo e com seus fracassos, idiossincrasias e prazeres antimonásticos. Em conversa profunda, mas sempre sorridente, ele chega a dizer que quer morrer, sua vida uma felicidade sem arrependimentos deixados para trás.
Nadeem, por seu lado, é todo ele uma tempestade de dúvidas e ressalvas, ressentimento profundo, mentiras e segredos. Mesmo antes de Ryushin aparecer, já “Crows Are White” se deixava levar pela história do autor, sendo que a nova personagem somente trouxe claridade, dando forma à amorfia. Nadeem fala muito da própria fé em narração inicial, mas só em diálogo com os pais, só quando revela a cara para a câmara, é que nos revela a herança islâmica e todo um percurso de emigração em jeito de fuga. Mãe e pai conheceram-se e casaram-se no Paquistão, tendo depois formado família na Arábia Saudita.
Lá nasceu o nosso guia na reflexão cinematográfica, mas não foi lá que cresceu. O rebentar da Guerra do Golfo levou o casal a mudar-se para a Irlanda. Na sua primeira pátria, Nadeem queria ser como o pai, ter barba maior que o avô e ter conhecimento religioso em paridade com aqueles imãs na TV. Em novo país, a hegemonia cristã levou à abertura de novas vertentes, curiosidades descobertas e uma abertura do paradigma religioso. Aterrados com a rebeldia adolescente do filho, com a possibilidade de essências perdidas, os pais tornaram-se dogmáticos, praticando fundamentalismos no lar. Até beber água se tornou complicado, um rito restrito por regras fixas.
Ainda há aqui comédia – um despertador em forma de mesquita dita quando rezar e estando estragado está sempre a tocar, até à noite, como que por praxe divina. Contudo, a ansiedade suplanta o riso. Veja-se como, chegada a idade adulta, deu-se outra fuga, com o jovem partindo para os EUA, para estudar cinema longe do olhar atento dessa família muito amada e temida também. Se Ryushin vive a sua verdade em modo radical, Nadeem deixa-se soterrar pela mentira, sua esposa a maior de todas elas. Dawn é uma mulher que ele conheceu na América, fora da fé, e com quem casou em segredo dos pais.
Sentimos que essa ocultação poderá fazer ruir toda a paz e esse torna-se no drama central de “Crows Are White.” Vem a pandemia e passam anos, um modesto exercício torna-se em épico de cinco anos e as nossas personagens alteram-se. Ryushin redescobre a fé perante a ascensão de Kamahori no fim da provação e Nadeem decide contar a verdade. Isso só acontece depois de nova peregrinação, a estrutura do filme complicando-se ainda mais nesta constante viagem intercontinental. Só que, mais uma vez, o engenho cinematográfico é só desculpa para adiar a ação direta e a procura de respostas com Kamahori torna-se na piada mais cruel do filme.
Digamos que o feitiço se vira contra o feiticeiro e será agora o realizador transtornado pelo toque de um telemóvel. É um gesto genial e cortante, um acaso que se torna em milagre do grande ecrã. “Crows Are White” termina com conclusões felizes para todos, mas, antes de se chegar à bonança, há última tormenta a sofrer. Se calhar é o purgatório terreno dos monges fazendo seu derradeiro impacto sobre o exercício solipsista de Ahsen Nadeem, escancarando-se todas as tonalidades cómicas com um devastador sentimento – fizeste a escolha errada, filho. A autorreflexão por meio de cinema tem os seus limites, mas este documentário tenta fechar todos seus fios ideológicos, rendendo-se a uma estrutura caótica onde não ter resposta às questões mias importantes da vida é, por si só, uma resposta poderosa.
Crows Are White, em análise
Movie title: Crows Are White
Date published: 27 de June de 2023
Director(s): Ahsen Nadeem
Genre: Documentário, 2022, 97 min.
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Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO:
“Não sei se os devias filmar” – os limites do engenho cinematográfico, a crueldade de tornar a vida em matéria-prima do grande ecrã, ecoam ao longo deste documentário de Ahsen Nadeem. Um exercício que arrisca o solipsismo insular, “Crows Are White” triunfa na indagação espiritual dividida entre dois homens tão parecidos e tão diferentes. Entre um casamento secreto nas Américas, uma casa de imigrantes na Irlanda e o mosteiro nipónico, traça-se um jogo comovente, meio caótico, mas bem rematado para deixar o espetador feliz, quiçá com alguma lágrima no olho.
O MELHOR: Ryushin é uma figura brilhante, tão idiossincrático que merecia um filme só para ele, existindo além de espelho para ajudar o realizador no seu caminho rumo à verdade, à confissão, ao espírito liberado.
O PIOR: Junto aos últimos movimentos familiares, a banda-sonora escala até uma euforia eletrónica. É um bonito momento, mas não redime toda a intromissão sentida nas primeiras sequências de “Crows Are White.” O mecanismo funciona intelectualmente sem, no entanto, vingar na fluidez do filme experienciado.
CA