"Man Caves" | © Climage

FEST ’23 | Man Caves, em análise

No FEST – New Directors | New Films Festival, em Espinho, “Paradise” ganhou o Lince de Ouro na competição de longas-metragens documentais. Contudo, o júri decidiu atribuir também uma menção honrosa. Esse reconhecimento recaiu sobre “Man Caves,” também conhecido como “Garçonnières,” onde a realizadora francesa Céline Pernet explora o tema da masculinidade através de várias entrevistas. O filme suíço teve a sua estreia mundial no prestigiado festival Visions du Réel, fazendo as rondas do mundo francófono antes de chegar a território lusitano. Oxalá, o sucesso neste circuito lhe possibilite mais estreias comerciais fora da Suíça.

À semelhança de muito cinema documental contemporâneo, a mais recente obra de Céline Pernet predica-se numa proposta meio solipsista, onde a exploração temática acaba sempre por recair no retrato autorreflexivo. Em defesa da realizadora, “Man Caves” pronuncia logo essas vertentes, usando a narração em voz-off como forma de contextualizar a pesquisa sobre masculinidade moderna na experiência pessoal da sua autora. Até a geração estudada devém dessa identidade por detrás da câmara, tendo Pernet postado anúncio nas redes sociais a pedir homens sensivelmente da sua idade, entre os 30 e os 45 anos.

Ao invés de trazer os seus convidados a um qualquer estúdio, Pernet repete a peregrinação dos seus dias em apps de encontros. Só que, neste caso, o destino não é a gratificação da carne, mas uma entrevista no habitat natural desses homens, suas “Man Caves” ou “Garçonnières” como o título sugere. De facto, o estabelecer de cena ocupa muito das primeiras passagens da fita. É como um desvendar do artifício, com especial ênfase na maquilhagem dos sujeitos em entrevista. Poderemos ver aqui uma subversão dos códigos de género, ou quiçá um convite ao espetador, sugerindo uma meditação sobre a natureza esquemática jogo mais meta-cinemático.

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Em todo o caso, Pernet não demora muito a pôr as mãos à massa, levantando logo as questões principais do seu projeto. O que é ser um homem? Mais especificamente, o que é ou quem é o homem do século XXI? As respostas variam, apesar de certos pontos se repetirem, suposições sobrepostas pela montagem e esquema documental. Tantos definem a masculinidade em relação à mulher, enquanto figura protetora acima de tudo. Supõem-se que o homem deve proteger o outro sexo de algo, quiçá do mundo ou então dos outros homens. Até os mais progressistas tendem a seguir essas linhas retóricas.

Até as noções de homens queer se parecem prender ao contraste com a mulher. Faz-se o apelo a feminismos, por exemplo, assim como à regra silenciosa que as sociedades impõem sobre o desejo, indicando o que é esperado e o que não é. Um homem sentir-se atraído por homens evidencia-se neste discurso como a descoberta de uma identidade contraditória à “normalidade,” à “regra.” De facto, no meio desta hegemonia hétero, a palavra de um dos entrevistados gay revela particular interesse pelo seu conflito interno, as contradições do desejo. Apesar de criticar o estoicismo masculino, também confessa achar isso atraente.

Há aqui uma renegação da vulnerabilidade, por vezes até criticada pelos sujeitos dentro do jogo de exposição pessoal. Entende-se que a educação social lhes disse que o homem não deve chorar, que isso é coisa de criança ou mulher. Assim se vê quanto o machismo não é só uma imposição do masculino acima do feminino. Também é prisão, linhas normativas traçando uma jaula que confina tanto quanto exulta. Até o entrevistado mais tradicionalista mostra alguma fricção para com o ideal tradicional, vendo nele algo a que se tem de moldar, por muito que isso custe, desespere. O paradoxo desta ideia conservadora é a história do homem armadilhado pela noção restritiva do que é ser homem.

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“Man Caves” deslinda e desconstrói noções de masculinidade tóxica sem nunca cair num julgamento demasiado enfático. A empatia para com o entrevistado mantém-se constante por todo o projeto, havendo um gesto em prol do entendimento. A realizadora quer entender os homens e sua câmara partilha a mesma curiosidade. Oxalá, a audiência também. Isso não quer dizer que a sua presença no espaço masculino não tenha efeito marcado. Ela não é entidade neutra. Inicialmente, é bem evidente quanto a presença da figura feminina modula o discurso, ora puxando por um registo defensivo, um entendimento mútuo, ou até algum paternalismo, antagonismos na guerra de géneros traçada em jeito de conversa.

Com isso dito, será possível encontrar vertentes mais cómicas nestas tensões. Veja-se a vergonha de alguns homens em falar de sexo na frente de uma senhora, parecendo mais francos quando os olhos miram a câmara do que quando incidem em quem lhes faz as perguntas. A bochecha corada tem a sua piada. Também tem o poder de nos desarmar enquanto espetadores. Pensemos numa secção da entrevista focada em cabelo e pelo. Aí, trespassa humor quando Penet inclui o testemunho repentino de um homem sem pilosidade alguma por condição genética. O coitado só queria mesmo ter barba.

Outros desgraçados cantam o fado da cabeleira perdida, cortando a graça com um comentário sobre envelhecer e já não reconhecer a imagem no espelho como um reflexo de si mesmo. Fala-se de cartas baralhados em nova ordem, da queda de um pedestal. Fala-se de carecas reluzentes e faz-se a montagem caótica. De conversas sobre pelos e pilas, corta para arbustos fálicos a precisar de um corte para ajeitar a forma. Do sexo para a botânica num piscar de olhos. Entenda-se neste último ponto que a entrevista é base, mas não resume todo o edifício fílmico. Pernet inclui vários desvios na sua investigação, normalmente sob formas autorreflexivas.

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Considere-se um exemplo singular. Para estabelecer contraste com um tableau de meninos a fazerem-se de fortes perante o desafio de uma prancha alta, incluem-se vídeos domésticos da realizadora brincando com Barbies junto à árvore de Natal. Para rematar a honestidade do entrevistado, Pernet ainda partilha connosco a sua primeira experiência sexual, a descoberta adolescente dessa nova intimidade. Toda a secção da conversa se separa por estes voz-off entre capítulos, este apontamento feminino no meio de tudo. Por aí vão-se desvendar os problemas do engenho também, com “Man Caves” ganhando e perdendo pela sua miopia autoral.

Tanto nos focamos na resposta repetida que talvez se menospreze a diferença entre os muitos homens. Olhando fora das rimas e ecos, descobre-se uma heterogenia de perspetivas em passiva negação dos essencialismos de género que, em certa medida, orientam a pesquisa cinematográfica. O tempo não ajuda, com 90 minutos sendo demasiado curtos para englobar toda a vastidão da temática. Com pouca distorção formalista para complicar a coisa ou conflito de conceitos em ação, “Man Caves” parece resolvido em inconclusão desde o primeiro minuto e jamais supera um certo superficialismo. Mas é claro que, ora na esfera narrativa ou documental, preferimos o cineasta ambicioso àquele que tenta pouco e nada de valor produz. Apesar de Pernet não suceder por completo, a força motriz do seu trabalho impõe respeito.




Man Caves, em análise
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Movie title: Garçonnières

Date published: 28 de June de 2023

Director(s): Céline Pernet

Genre: Documentário, 2022, 91 min.

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

As virilidades do homem moderno são questionadas, feitas problema e maravilhoso mistério em “Man Caves.” Céline Pernet investiga o assunto com variações de graça e seriedade, um mosaico de entrevistas domésticos que vão desde o sexo à pilosidade, desde regras sociais às questões do espírito perdido. Sem grande inovação ou argumento complexo, o filme deleita, mesmo assim, e dá que pensar também.

O MELHOR: A honestidade dos sujeitos, um sussurro de humor, o candor da realizadora sempre pronta a expor tanto sobre si quanto expõe dos seus sujeitos.

O PIOR: A falta de invenção estética, a duração curta que limita quanto Pernet consegue aprofundar os temas escolhidos. Modelos de masculinidade mais específicos são ignorados, variações de etnia e classe somente aludidos sem nenhum detalhe.

CA

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