"Inquérito a um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita" | © Vera Films

Festa do Cinema Italiano ’23 | Inquérito a Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, em análise

Como parte da sua programação, a 16ª Festa do Cinema Italiano deu especial destaque à obra de Elio Petri. Um dos grandes títulos em exibição foi “Inquérito a Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita,” conhecido no original como “Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto.” Em 1970, o filme ganhou o Grande Prémio no Festival de Cannes e representou a Itália nos Óscares. Da Academia de Hollwyood, Petri ganhou o galardão para Melhor Filme Estrangeiro e foi nomeado para Melhor Argumento Original, juntamente com Ugo Pirro.

O cinema de Elio Petri sempre foi fortemente político, quer seguisse os preceitos de um Neorrealismo tardio ou fosse por caminhos mais estilizados. Enquanto realizador, a sua carreira teve início na alvorada dos anos 60, com “O Assassino” e Marcello Mastroianni no papel de protagonista. O renome cresceu ao longo dos anos, estendendo-se até fama internacional e as insinuações do giallo e outro cinema de género. Chegados os anos 70, a maturação do cineasta enquanto satirista havia atingido o seu apogeu, englobando tanto texto como forma, moldando os preceitos do entretenimento para virar um espelho à audiência e apontar o dedo àqueles no poder.

É neste contexto que nos surge “Inquérito a Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita,” com seus prólogos na senda do erótico antes de cair no terror, reconfigurar-se em jeito de drama criminal e, por fim, a sátira que está a um passo do surreal, quiçá até da farsa. Trata-se de um exemplo supremo do poliziesco que tanto ganhava popularidade entre o público italiano da época. Contudo, acima da mistura de géneros e apelo ao entretenimento popular, Petri emprega o seu cinema enquanto bisturi com que dissecar uma ordem social em desordem. Faz-se a crítica envolver em mel para melhor ser engolida, digerida, talvez até entendida.

festa do cinema italiano investigacao de um cidadao acima de qualquer suspeita critica
© Vera Films

Tudo começa num serão carnal, uma visita que um detetive recentemente promovido presta à amante. A câmara deixa-se levar pelas cenografias teatrais, serpenteando entre tecidos diáfanos e linhas verticais que sugerem uma gaiola, uma prisão. É o local perfeito para estes encontros secretos, onde amantes fazem a fantasia tornar-se realidade e algo mais tenebroso tem lugar. A música de Ennio Morricone, contudo, sibila com ominoso aviso. Ela pergunta-lhe se a vai matar hoje, ele diz que sim. Será este um jogo erótico dos dois? Assim parece, até que a brincadeira resvala em violência genuína, a cara da mulher revelando o pânico. Morre a cena e a mulher está morta.

Antes de sair, o inspetor sem nome deixa uma série de pistas, como que a testar os limites da justiça. O jogo torna-se aparente quando, chegado ao trabalho, é ele que fica encarregue de investigar o homicídio por si cometido. O absurdo da situação é interpretado com estoica perfeição por Gian Maria Volontè, vencedor do prémio David di Donatello para Melhor Ator por este filme. Assim se vai desenrolando uma investigação doida pela qual o homem a quem todos chamam “Doutor” se tenta apanhar a si mesmo e escapar ao punho da justiça por si personificado. Ou melhor, será a injustiça, visto que Petri tem em mente uma subversão continua de um sistema fundamentalmente corrupto onde quem tem poder vive acima de qualquer suspeita.

Lê Também:   A Volta ao Mundo em 80 Filmes

Tanto isso se sublinha que, a um certo nível, o protagonista não é um ser humano tanto quanto é uma ideia de poder em forma de pessoa, a quem todas as malvadezas são desculpadas por uma sociedade pré-programada para assim fazer. A motivação, só por si, trespassa a desumanidade de um trapaceiro que brinca com seus colegas, testando os limites da sua cegueira institucional. Mas não há prazer no ato pois este não é protagonista além do papel mecânico dentro da narrativa. Os poucos vislumbres que temos de humanidade surgem só ocasionalmente, especialmente perto do final quando, por instantes, parece que o inevitável poderá ser evitado por algum lance de rara, mas real, justiça. Aí, o melodrama explode, mas já falaremos disso no fim.

Através de uma personagem escrita enquanto anti-personagem, Petri, seu ator e restante equipa criativa formulam um ataque à Itália cheia de hierarquias onde as sombras do fascismo ainda perduram mesmo que o regime tenha tecnicamente caído. O apelo à leitura política faz-se pela erosão da personalidade e da psicologia, deixando um buraco negro de corrupção sem alma no seu lugar. Discursos pouco generosos apontariam para estas construções como capitulações a simbolismo no altar do moralismo, perdendo complexidade textual para melhor passar uma mensagem panfletária. Só que a complexidade existe ao nível da crítica, do comentário, e sobretudo no que se refere à materialização dessas ideias em termos formalistas.

festa do cinema italiano inquerito a um cidadao acima de qualquer suspeita critica
© Vera Films

Já se falou na câmara, na música, nos cenários, mas não há palavras suficientes para descrever a fluidez mortífera com que Petri orquestra esta sua sinfonia cinematográfica. Até a comparação das figuras rejeitadas pela norma e as autoridades conformistas se expressa em termos audiovisuais, contrapondo figurinos coloridos com as linhas escuras e ângulos retos afigurada em homens de fato e gravata. O modo como a arquitetura molda e evidencia as ordens subjacentes à gente que nela vive é outro detalhe fulcral. Mas quem pense que esses mecanismos intelectualizam a história, estejam descansados. Petri quer fazer pensar, mas não deixa de entreter para esse efeito. O ritmo, por exemplo, é máquina bem oleada, cada corte feito com propósito para propulsionar a experiência do espetador.

Em passagens perto do final, o fantasma do giallo manifesta-se, como que recordando as experiências passadas do cineasta e reforçando essa ideia de que o ativismo em celuloide se pode fazer através de um serão bem passado. “Inquérito A Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” dá para rir e também nos suscita o êxtase visceral que só se encontra no erotismo e no terror. A conclusão rebenta com as costuras do filme e até a sua prestação central, permitindo a Volonté um maximalismo histérico que parece seduzir a audiência a sentir falsa catarse. Irónico, divertido, tão ácido que queima a carne, tão feroz que nos arranha o espírito, esta sátira policial é um clássico do cinema italiano por excelência.

Inquérito a um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, em análise
festa do cinema italiano inquerito a um cidadao acima de qualquer suspeita critica

Movie title: Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto

Date published: 5 de April de 2023

Director(s): Elio Petri

Actor(s): Gian Maria Volontè, Florinda Bolkan, Gianni Santuccio, Orazio Orlando, Sergio Tramonti, Arturo Dominici, Aldo Rendine, Massimo Foschi, Vittorio Duse, Pino Patti, Salvo Randone, Franco Marletta

Genre: Crime, Drama, 1970, 115 min

  • Cláudio Alves - 95
95

CONCLUSÃO:

Misturando géneros e paradigmas de entretenimento, apelando a vil humanidade e registos anti-naturalistas, maldades plenas e sistemas injustos, Elio Petri assina aqui uma obra-prima. Existem aqueles clássicos que, quando reanalisados, fazem questionar a sua grande reputação. “Inquérito a Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” não é o caso, sua genialidade tão óbvia nos dias de hoje como quando foi consagrado pela crítica, os espetadores, júris de festivais e a própria Academia dos Óscares.

O MELHOR: A estrutura é impecável, desde o homicídio inicial até ao dramatismo do fim sardónico. Também se aplaude a desumanidade intencional, a prestação sem mácula de Volonté e a música genial de Morricone.

O PIOR: Nada a apontar, sendo o filme praticamente perfeito.

CA

Sending
User Review
3.5 (2 votes)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending