Foge, em análise

Foge é a estrondosa fusão de sátira racial e arrepiante filme de terror que tomou de assalto o box-office americano e agora chega aos cinemas portugueses.

foge get out

Ao longo da história da sétima arte, tem-se verificado como o cinema dito de género (terror, ficção-científica, fantasia, ação, etc.) pode ser um palco muito mais eficaz e persuasivo para importantes assuntos sociais e políticos que outros tipos de filmes. Afinal, há sempre algo de condescendente em solenes dramas dos grandes estúdios que nos querem ensinar e influenciar as nossas ideologias. Por outro lado, quando tais mensagens estão envoltas em humor, leveza ou fantasia, e expressas por meios alegóricos, está subentendido um diálogo de confiança e inteligência mútua entre o filme e o espetador. Chamamos a atenção a este fenómeno, pois Foge, uma comédia de terror satírica que marca a estreia de Jordan Peele na cadeira de realizador, é talvez a mais acutilante e agressiva representação de tóxicas dinâmicas raciais a chegar às salas de cinema nos últimos tempos.

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Tais temáticas há muito que se manifestam no trabalho de Peele, desde as suas colaborações televisivas com Keegan Michael-Key até Keanu, o recente filme protagonizado pelos dois amigos. Essa obra, tal como Foge, foi uma sátira cómica que abordou complicadas questões raciais, usando como base o típico filme de ação de Hollywood. Uma diferença entre esse projeto e o filme que estamos a analisar, é que Keanu é uma comédia de ação do princípio ao fim, enquanto Foge pode começar como uma comédia de terror, mas, chegado o seu último ato, a comédia há muito morreu e o terror domina, tanto em termos de ação como de subtexto. Outra importante distinção é que, apesar de Foge nunca deixar de ser um bombástico objeto de entretenimento, não existe grande tentativa de esconder o seu discurso de indignação social com subterfúgios ou subtis metáforas. Tendo em consideração o clima político que acolheu o filme aquando da sua estreia americana em fevereiro deste ano, tal agressividade panfletária é não só entendível como vital.

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Se formos perfeitamente honestos, há que dizer como a melhor forma de apreciar Foge é vê-lo sem grandes informações sobre a sua história. Tentaremos assinalar os spoilers mais importantes, mas aconselhamos a que o leitor veja o filme antes de ler toda a nossa análise. Com esse aviso feito, podemos falar um pouco do enredo de Foge, que, depois de um sombrio prólogo suburbano que recorda a morte de Trayvon Martin, se apresenta como uma espécie de satirização moderna do tipo de narrativa tipificada por Adivinha Quem Vem Jantar. O nosso protagonista é Chris (Daniel Kaluuya), um talentoso fotógrafo afro-americano que namora com uma rapariga caucasiana de ideias liberais, Rose (Allison Williams). Quando conhecemos o casal, eles estão a preparar-se para ir visitar os pais da mulher, que aparentemente não sabem que ela está a namorar um homem preto. Isso preocupa Chris, mas Rose rapidamente sossega o namorado, defendendo os seus pais como democratas progressistas que, se pudessem, tinham votado em Obama para um terceiro mandato.

Essa mesma afirmação vem a ser repetida pelo patriarca em questão (Bradley Whitford), que vive numa opulenta casa com a sua esposa psicóloga (Catherine Keener), e uma criada (Betty Gabriel) e jardineiro (Marcus Henderson) afro-americanos. É neste cenário que Peele começa a delinear uma das mais furiosas críticas do filme, direcionada precisamente às elites sociais brancas que se dizem liberais mas cujo discurso está pejado de micro agressões, que tanto podem ser fruto de insensitividade relativamente inocente ou algo mais sinistro. Note-se como Chris tem sempre um sorriso na cara, não como uma genuína expressão de felicidade, mas como um mecanismo de defesa. Numa sociedade tão pré-programada a ver num homem preto um sinal de perigo, uma atitude amistosa torna-se numa armadura natural. Um tenso jantar familiar e uma festa entre vizinhos marca o píncaro desta comédia de desconforto que, nas mãos de Peele, consegue ser muito mais arrepiante que qualquer uma das sanguinárias visões do final, talvez porque facilmente nos conseguimos situar nesta realidade venenosamente banal.

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Esse sorriso armado é um dos maiores triunfos da prestação de Kaluuya que, tal como todos os atores em cena, é uma escolha perfeita para o seu papel. Veja-se, por exemplo, Catherine Keener, uma veterana de comédias nova-iorquinas cheias de intelectuais de esquerda a celebrarem a sua tolerância, que traz ao papel da matriarca uma desconcertante familiaridade. Allison Williams e Caleb Landry-Jones não lhe ficam atrás como Rose e o seu irmão, nem que seja pelo simples facto que devido a questões de persona pública e tez natural, os dois atores são desconfortavelmente “brancos”. É claro que, tirando Kaluuya, as grandes revelações do filme são Lakeith Stanfield e Betty Gabriel, cuja capacidade para sugerir uma monstruosa desassociação entre corpo, personalidade e inconsciente é algo que pertence ao panteão do grande cinema de terror. Ambos são amplamente ajudados por Peele, que através de precisa montagem, efeitos sonoros exagerados e o soberbo uso de claustrofóbicos grandes planos, consegue tornar certos momentos em pesadelos insuportáveis.

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Até ao seu terceiro ato, em que segredos são revelados e muito sangue escorre, a estrutura narrativa de Foge atua como uma corda a ser torcida até ao ponto em que só pode rebentar com a acumulação de tensão. Tecnicamente falando, isso leva a que os momentos finais de Foge sejam os seus mais pueris e indisciplinados, sendo que somente o retrato de Chris consegue manter a mesma complexidade anterior e oferecer uma necessária catarse à audiência. Longe dos estoicos “negros excecionais” que Sidney Poitier personificou em filmes como o já mencionado Adivinha Quem Vem Jantar, Chris não é um ideal nascido de vácuas noções de tolerância, mas sim um ser humano que, depois de passar por indescritíveis indignidades, explode numa tempestade de violência vingativa. Com essa importante escolha, Peele salienta o modo como a sociedade dominante tende a olhar para as pessoas de diferentes etnias como algo exótico, idealizando, vilificando ou fetichizando os seus corpos, mesmo quem em veneração, e, por consequência, despindo-as da sua humanidade.

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[SPOILERS COMEÇAM AQUI!] O grande crime da comunidade caucasiana no centro do filme não é o seu ódio destruidor por pessoas pretas, mas a sua incapacidade de ver nelas seres humanos. Por isso, eles tratam os corpos afro-americanos como invólucros desejáveis nos quais querem depositar a sua própria consciência, eliminando as mentes originais dessas pessoas como se de uma erva daninha se tratassem. É esta a grande proposta fantástica de Foge: brancos liberais que raptam afro-americanos para depois realizarem transplantes de cérebro e assim trocarem os seus corpos envelhecidos por potentes objetos cheios de vitalidade. Peele vai ainda mais longe, exemplificando os tóxicos costumes de apropriação cultural através de um artista falhado e cego que deseja ficar com o corpo de Chris, pois quer ver o mundo através dos seus olhos, quer a sua perspetiva individual, nascida de uma cultura socialmente distante.

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O melhor disto é a calculada elegância cinematográfica com que Peele tudo orquestra. O seu argumento, por exemplo, está pejado de ecos e situações repetidas que ganham novas dimensões á medida que sabemos mais informações sobre o horror em ação. Uma fala cómica da primeira parte, revela-se como uma premonição arrepiante do que acontece no final. O atropelamento de um veado no início serve como um indicador dos diferentes níveis de empatia de Chris e Rose, que só se tornam evidentes no final. Imagens como um copo de leite, um leilão silencioso ou os braços desfeitos de uma poltrona desdobram-se em densos significados raciais cujos referentes se estendem até ao esclavagismo ancestral. [FIM DE SPOILERS!] Nada em Foge foi escolhido ao acaso e nem um único fotograma mostra sombra de displicência formal ou intelectual.

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No final, Peele conseguiu criar, em Foge, uma das mais violentas sátiras raciais que o cinema mainstream americano já viu. Um reflexo do modo como o corpo enquanto objeto político é simultaneamente uma potencial arma de resistência assim como uma realidade criada pelas estruturas da sociedade dominante, que assim tornam a própria materialidade física do ser humano numa prisão capaz de negar liberdade, autonomia, humanidade e o controlo de uma pessoa sobre o seu próprio destino. Não se trata de um filme perfeito, bem longe disso, mas é um formidável exercício de terror e cinema político, que, para além do mais, consegue ser tão divertido como é acídico. Em suma, é um filme importante, quase vital na atualidade política, que merece todo o sucesso que tem alcançado.

 

Foge, em análise
foge get out

Movie title: Get Out

Date published: 2 de May de 2017

Director(s): Jordan Peele

Actor(s): Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener, Betty Gabriel

Genre: Terror, Mistério, Comédia, 2017, 104 min

  • Cláudio Alves - 80
  • José Vieira Mendes - 85
  • Catarina d'Oliveira - 90
  • Daniel Rodrigues - 72
  • Filipa Machado - 70
  • Maggie Silva - 85
80

CONCLUSÃO

Foge é uma estreia auspiciosa para Jordan Peele enquanto realizador, com tanto valor de entretenimento como genuína carga política a tornarem-no num dos filmes mais importantes e memoráveis de 2017.

O MELHOR: A mera existência de um filme assim é um milagre, o seu estrondoso virtuosismo é um precioso bónus e o seu sucesso comercial nos EUA tem sido espantoso. Queremos mais cinema com este tipo de ambição!

O PIOR: O modo como o melhor amigo de Chris, interpretado por LilRel Howery, tende a verbalizar todos os seus pensamentos de um modo inorgânico e francamente preguiçoso de um ponto de vista dramatúrgico.

CA

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  1. Frederico Daniel 18 de Fevereiro de 2019

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