A Cidade Perdida de Z, em análise

História, tempo, fé, paternidade e geografia desdobram-se em fascinantes paradoxos em A Cidade Perdida de Z, o mais recente triunfo meditativo de James Gray.

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Desde a estreia da sua primeira longa-metragem, que James Gray se tem evidenciado como uma peculiar anomalia no panorama do cinema americano atual. Mais especificamente, os seus filmes são bizarros anacronismos que parecem existir fora do tempo, tão distantes da sua efetiva era de produção como do período passado ao qual vão buscar o seu estilo. Esse período é a década de 70, quando Scorsese, Cimino, Coppola, Malick, Altman e outros que tais tinham construído sobre a carcaça da velha Hollywood uma nova e revitalizada realidade, O Novo Cinema Americano. Alguns dos filmes de Gray parecem mesmo parentes afastados de algumas dessas obras-primas passadas, tanto no que diz respeito às suas histórias como no que se refere às suas opulentes imagens realistas tingidas a âmbar e aos seus vagarosos ritmos.

Por isso mesmo, A Cidade Perdida de Z afirma-se como uma espécie de culminar artístico do realizador. Baseado num livro de David Grann, o filme conta uma versão da história verídica de Percy Fawcett, um célebre explorador e militar inglês da primeira metade do século XX, que é lembrado pelas suas várias expedições ao interior da Amazónia em busca de indícios que provassem a existência de uma suposta civilização indígena há muito perdida. A última destas expedições teve lugar em 1925 e terminou com o desaparecimento de Fawcett e do seu filho mais velho, a participar pela primeira vez nas aventuras do pai. As sete viagens do explorador foram transformadas em três por Gray, que estrutura o seu filme à volta delas com interlúdios passados em Inglaterra e, numa só ocasião, nas trincheiras da 1º Guerra Mundial. Tais manipulações históricas não foram feitas em nome de uma maior energia dramática pois, independentemente da sua publicidade ou das expetativas de um público desinformado, A Cidade Perdida de Z é tudo menos uma tradicional aventura histórica.

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Na verdade, o filme poderia ser facilmente caracterizado como um meditativo estudo de personagem, que usa a figura de Fawcett como modo de explorar uma série de temas que interessam a Gray, enquanto cineasta e, como muitas entrevistas podem revelar, enquanto pai. Para começar, na mesma medida em que Gray é um realizador que segue em direção ao futuro da sétima arte de olhos sempre postos no passado clássico, Percy Fawcett é um homem que pensa em si mesmo como alguém que está à frente da sua era, mas cujas obsessões incidem na descoberta de realidades passadas. Este paradoxo é perfeito para uma pessoa removida do seu tempo, geografia e nação por escolha própria e que, por muito que diga o contrário, tem sempre o seu lugar na História como principal preocupação.

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Tais questões de legado pessoal são uma questão humana que há muito preocupa algumas das mentes mais importantes do cinema. Os próprios mentores de Gray, esses grandes autores americanos dos anos 70, criaram inúmeros dos seus mais famosos trabalhos em volta de homens que se questionavam sobre o seu lugar no mundo, sobre a sua importância e, acima de tudo, sobre o legado que iam deixar para trás. Nestas narrativas, a História não é somente uma área de estudo ou um sepulcro de informação sobre o passado, mas sim um meio para o homem contextualizar a sua existência no universo, um mecanismo pelo qual o individuo pode encontrar sentido e valor para a sua vida. Em A Cidade Perdida de Z, a ideia da civilização indígena torna-se num mantra dogmático na religião que é a História e Fawcett, como um fervoroso crente, orienta toda a sua vida e destino por essa fé e muito tenta converter os seus companheiros, familiares e colegas em prosélitos da igreja de Z.

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Com descrições assim, talvez possamos estar a induzir o leitor a ver em Fawcett uma figura tão consumida por insanidade como Fitzcarraldo, Aguirre ou o Coronel Kurtz, mas a realidade é bem diferente. Interpretado com adequada nobreza, pose e reticência por Charlie Hunman, o nosso protagonista é um homem completamente seguro de si mesmo, cuja absoluta certeza nas suas ideias reflete tanto a força da sua fé como o privilégio de um aristocrata. Aliás, alguns dos pormenores mais interessantes na construção desta personagem são as suas inúmeras contradições e hipocrisias. Por exemplo, Fawcett está pronto a apontar o dedo aos seus colegas racistas, mas o modo como mentalmente reduz os nativos amazónicos a um meio para a sua glorificação pessoal reflete o mesmo tipo de mentalidade imperialista. Na mesma medida, apesar da sua conversa progressista, as constantes viagens de Fawcett subjugam a sua esposa feminista à posição de dona de casa e mãe obrigada a abdicar de todos os seus sonhos e ambições pessoais. Da relação dele com os filhos que praticamente não o conhecem devido às constantes expedições feitas em nome do prestígio familial, então fica só a nota que dois dos momentos mais emocionalmente lacerantes centram-se no filho mais velho de Fawcett, no início e final da campanha exploradora que lhe iria custar a vida.

Especialmente no último capítulo da narrativa, este retrato central à Cidade Perdida de Z ganha um teor de tragédia à la Visconti, em que um homem é relutantemente confrontado com a possibilidade da sua própria insignificância, independentemente de questões de estatuto ou fama. Poderíamos mesmo dizer que, nos seus derradeiros momentos, Fawcett aceita que é melhor viver para sempre como uma lenda consumida pela selva do que como um zé-ninguém facilmente esquecido em território de Sua Majestade. Uma coisa é certa, a Inglaterra Eduardina não é o lar do coração deste aventureiro e Gray não poupa mecanismos formais na ilustração dessa mesma ideia.

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A montagem, em particular, é sublime na sua diluição de barreiras espácio-temporais, esbatendo linhas cronológicas de tal modo que a distância entre a América do Sul e a Europa se torna numa indefinição abstrata. A certa altura, a selva em si parece a realidade visceral deste homem e a vida junto da sua família é renegada ao estatuto de um estranho sonho recorrente. A fotografia de Darius Khondji, ainda mais que a montagem, exacerba a qualidade onírica destas realidades com imagens pintadas em verdes e amarelos tão resplandecentes como doentios, castanhos densos, pontadas inesperadas de azul inorgânico e caracterizadas pela conspícua falta de vermelho sanguíneo. Não é por nada que Gray é um cineasta classicista. Toda a construção formal desta obra é exímia, mesmo no que diz respeito às recriações históricas de cenários e roupas ou à música que oscila entre melodias épicas onde ressoa o poder de uma orquestra completa e passagens amorfas que se misturam com a cacofonia da natureza.

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A acrescentar-se a isso, este projeto também funciona como uma boa montra para as capacidades de Gray em direção de atores. Já falámos da apropriada nobreza solene e segura de Hunman, mas ainda mais impressionante que o seu trabalho é o desempenho camaleónico de Robert Pattinson que, com a face obscurecida por uma farfalhuda barba, depende sobretudo da sua postura e ritmos físicos para delinear a sua personagem de um companheiro de viagem sempre leal a Fawcett. Num papel mais secundário, Angus Macfadyen deixa um memorável impacto no espetador e Tom Holland, como o filho mais velho do protagonista, é um bom veículo para as passagens mais sentimentais do filme. Como a mulher de Fawcett, Sienna Miller revela quão anda a ser desperdiçada por papéis e realizadores desinspirados, e dá uma necessária dignidade imbatível à sua figura trágica.

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É com a esposa do explorador que A Cidade Perdida de Z termina, num momento em que as barreiras entre selva e Inglaterra finalmente desaparecem. Já antes o filme tinha brincado com tais intersecções ora grotescas, como uma ópera setecentista no meio do arvoredo, ora místicas, como a viagem espiritual nas palavras de uma cartomante, mas esta nota final é mais acutilante pelo seu misterioso lirismo. Nesse registo, James Gray despede-se do seu público, deixando nas suas mãos mais perguntas que respostas. Tal oferta poderá frustrar muitos, mas poderá suscitar o pensamento de tantos outros a refletir sobre um filme que, através de uma matriz clássica, tem muito a dizer sobre religião, fé, História, imperialismo, inseguranças existenciais e até sobre o modo como homens renegam o legado dos seus pais, tentam superá-lo e, pelo caminho, acabam por se destruir a si mesmos e aos seus filhos.

 

A Cidade Perdida de Z, em análise
a cidade perdida de z The Lost City of Z

Movie title: The Lost City of Z

Date published: 2 de May de 2017

Director(s): James Gray

Actor(s): Charlie Hunnam Robert Pattinson, Sienna Miller, Tom Holland

Genre: Drama, Histórico, Biografia, 2016, 141 min

  • Cláudio Alves - 88
  • Rui Ribeiro - 75
  • José Vieira Mendes - 70
  • Daniel Rodrigues - 75
  • Filipa Machado - 70
76

CONCLUSÃO

A Cidade Perdida de Z é mais um complicado triunfo de James Gray que se mantém fiel á sua estética característica mas mostra que ele também é capaz de evoluir enquanto cineasta e contador de histórias.

O MELHOR: O primor formalista de todo o filme, especialmente no que diz respeito à sua majestosa fotografia.

O PIOR: Para muitos espetadores, o modo como a premissa narrativa e o marketing do filme parecem prometer uma inspiradora aventura histórica poderá ser a fonte de grande frustração e desapontamento perante a letárgica e meditativa realidade da obra final.

CA

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