13º IndieLisboa | Desde allá, em análise
A partir de uma magistral economia formal e narrativa, Lorenzo Vigas cria em Desde allá um potente retrato de uma peculiar relação erótica entre dois homens venezuelanos de classes sociais bastante distantes.
Aquando da sua vitória em Veneza, onde ganhou a honra máxima desse festival na forma do Leão de Ouro, Desde allá causou muita surpresa. Afinal, este filme é a estreia de um realizador Venezuelano completamente desconhecido e, apesar de alguns produtores bastante ilustres como Guillermo Arriaga, Michel Franco e Edgar Ramirez, pouco se tinha falado do filme antes da sua vitória. Depois dessa áurea noite de prémios, contudo, o filme viajou à volta do mundo no circuito dos festivais, e muitas audiências tem impressionado, estonteado e enfurecido. Agora chega a Portugal com o Indie Lisboa e audiências nacionais podem finalmente testemunhar esta obra, um feito cinematográfico que é das mais seguras e magistrais estreias de qualquer realizador em recente memória.
O filme retrata, entre as suas variadas ideias, um tema ainda bastante tabu na Venezuela, a homossexualidade. Os protagonistas são Armando, um abastado proprietário de uma empresa de próteses dentárias, e Elder, um volátil jovem das ruas de Caracas. Este improvável par encontra-se aquando de um dos mais secretos aspetos da rotina do homem mais velho, quando este leva o jovem para sua casa para que este se dispa e ofereça estímulo visual para a masturbação de Armando. Este primeiro encontro tem um final violento e apimentado de enfurecida homofobia, mas, apesar do sucedido, os dois homens iniciam uma estranha relação de crescente dependência.
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É fácil reduzir este filme a uma narrativa homossexual, mas Vigas não cai em tais simplismos. Há algo mais abrangente e mais singular neste seu retrato de dois homens e a relação central é tão metafórica e simbólica como é meticulosamente específica. Por exemplo, é fácil observar esta trama e nela verificar uma história de classes abastadas a explorarem a pobreza de outras partes da sociedade, resultando em manipulações eróticas e mortíferas. No entanto, é difícil ver este par como meros símbolos, Elder como uma visão de toda uma população que vive na miséria criminosa de Caracas, ou Armando como a sanguessuga simbólica que utiliza essa população como alimento para os seus desejos sexuais e intenções vingativas e rapidamente os descarta quando o seu papel foi completo. Não que eles não sejam isso, mas são muito mais também.
Parte do sucesso desta observação devém precisamente do ato de observar. Desde allá é, afinal, um filme em que um dos seus protagonistas é principalmente caracterizado pela sua escolha do olhar em prol de qualquer tipo de contacto físico nas suas proclividades eróticas. Como consequência e em complementação disto mesmo, a direção de Vigas faz de Desde allá um filme de distâncias, a distância entre o observador passivo e um sujeito que é observado, ora em epítetos de desejo, de obsessão, de sagaz ponderação vingativa ou mera rotina. O ritmo é assim o de uma vagarosa observação, em que a câmara raramente se intromete na interior intimidade das psicologias de suas personagens.
Outro aspeto formal que harmoniosamente complementa estes magistrais jogos estruturais e ritmos é a fotografia de Sergio Armstrong. A imagem é usualmente larga e cheia de espaço vazio, usualmente distorcido pelo desfoque, fazendo com que existam ocasiões em que apenas elementos humanos sejam perfeitamente percetíveis e o resto seja um indefinido abismo. Vigas toma partido desta sublime e austera fotografia para prolongar cenas e momentos de tal modo que, acabamos por observar o espaço antes deste ser ocupado por pessoas ou muito depois deste ser abandonado. Assim, mundos humanos são definidos pelos espaços que habitam e a audiência é tão forçada a examinar a linguagem corporal das suas personagens como os ambientes domésticos em que estes são forçados, ou têm o privilégio, de habitar.
Uma das principais benesses deste tipo de austera abordagem é o choque que vem com o final da narrativa. Aquando desses derradeiros e impactantes momentos, a distância e frieza com que Vigas expõe a ambígua resolução deste relacionamento conjura um poder que não existiria com uma maior proximidade. Como audiência sentimo-nos tão estonteados como um dos protagonistas, tão confusos e cheios de questões nunca respondidas, e como os observadores dispersos pela rua, observamos impotentes a tragédia humana que se desenrola diante dos nossos olhos. Mas também, longe da realidade dos humanos em cena, entramos em ativo diálogo com o filme em si, que desafia abertamente a audiência a interpretar as suas visões, os seus retratos.
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Nada disto, no entanto, resultaria sem as duas vulcânicas prestações no seu centro. Como Armando, Alfredo Castro, um veterano do cinema chileno, é um milagre de cuidada e reptileana quietude, encontrando mais complexidade numa ocasional e invariável imobilidade dos seus olhos, que muitos atores com páginas e páginas de diálogo. No seu trabalho, os fantasmas de ofensas paternais e anos de repressão, estão marcados na sua expressão e corpo como cicatrizes monstruosas, que, no entanto, são apenas visíveis para quem se dignar a participar nos seus jogos de obsessiva observação. Na mesma medida em que Castro é uma estátua de impavidez e arrepiante segurança, Luis Silva como Elder é uma pequena explosão de agressiva vulnerabilidade. A partir de minúsculas mudanças de linguagem corporal vamo-nos apercebendo, pouco a pouco, da turbulenta tempestade interna de Elder e sua peculiar viagem emocional. Vamos vendo como um rapaz que, antes de Armando, pouco conheceu de afeto protetor ou que nunca teve ninguém que cuidasse dele como este misterioso homem, vai vendo os seus desejos desenvolverem-se o que o surpreende e impulsiona com uma explosiva intensidade, quase animalesca.
De dependência paternalista a agressivos momentos de sexo, esta relação é, mais que um tradicional retrato amoroso, um frio jogo de poder e domínio, físico, psicológico, económico e emocional. Por muito estéril que o filme pareça durante a maior parte do seu percurso, quando chegamos a uma climática cena de consumação, Vigas e seus atores conseguem conferir ao filme uma sensualidade inesperada, uma carnalidade que transpira dos corpos que se tocam em desesperada necessidade e sede. Que tal fogosidade possa existir numa obra tão glacial como esta é um perfeito testamento, não só ao magistral talento de Lorenzo Vigas, como aos seus atores e às fascinantes presenças humanas aqui conjuradas.
Com todos estes elogios, há que salientar, no entanto, como Desde allá, é um filme que demanda atenção da sua audiência e uma ilimitada paciência para observar silenciosamente. Para um público generoso o suficiente, esta é uma obra de uma invulgar intensidade, mas para quem não esteja assim disponível, este filme depressa se irá provar como um trabalho de sufocante tédio. Apesar de tudo isto, algo é certo, Lorenzo Vigas é um dos autores a se observar com atenção nos próximos anos.
O MELHOR: As camadas de nuance e contradições humanas que se revelam na relação central.
O PIOR: Dependendo da audiência, a grande austeridade rítmica e formal do filme poderá ser algo de monstruoso aborrecimento.
Título Original: Desde allá
Realizador: Lorenzo Vigas
Elenco: Alfredo Castro, Luis Silva, Jericó Montilla
Drama, Romance | 2015 | 93 min
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