IndieLisboa ’22 | Silvestre Curtas 3

Tudo começa com pepinos alucinados e termina com medidas sacras, um interlúdio das redes sociais metido pelo meio. Assim é a terceira sessão de curtas-metragens na programação Silvestre do 19º IndieLisboa.

cucumbers indielisboa critica
© School Studio ‘Shar’

CUCUMBERS de Leonid Shmelkov

O único filme de animação deste trio, “Cucumbers” relata a caricata situação de um fotógrafo que começa a ver pepinos em todo o lado. Um homem careca, calças azuis e camisa branca, o nosso protagonista é como um Homer Simpson esticado e alucinado. Só que, ao invés do seu gémeo Americano, o herói de Leonid Shmelkov tem tudo o que quer, desde sucesso profissional até ao sucesso com as mulheres. Só que há algo de errado nesta imagem de aparente idílio. Para começar, a fotografia não corresponde à realidade. Uma criança chora desconsolada, mas a imagem capturada mostra-nos um sorriso. A alegria cristalizada é uma ilusão, uma mentira.

Mais tarde, vemos como a realidade refratada por câmaras, telemóveis. Elas comem o que veem, consomem e digerem-no. Estamos perante uma realidade quebrada, mesmo antes de os pepinos começarem a aparecer. Mas quando aparecem, são impossíveis de ignorar. O pepino cortado grita de dor, cada fatia um desmembramento. Está vivo? Não sabemos. Afinal, sendo tudo pepinos, também a vida será um pepino. Há uma contagem cósmica, números que os pepinos dizem até quando se transfiguram em genitais esverdeados. O mundo desfragmenta-se assim, qual fotografia desfeita em pixels perdidos.

No final, será “Cucumbers” uma lição moralista em nome de uma vida com sentido? Uma negação da promiscuidade vácua? Do vaguear sem direção? Não, a resposta não é assim tão simples. Faça ele o que fazer, os pepinos continuam a surgir. Numa análise técnica, mais até do que a animação, é o trabalho de som e a montagem afiada que mais afetam a experiência do espetador. Ninguém fala, mas o ruído do ambiente diz-nos tudo. Ainda mais nos diz o silêncio nesta bizarra proposta do IndieLisboa.

by flavio indielisboa
© Kometa Films

BY FLÁVIO de Pedro Cabeleira

A irrealidade da imagem fotografada também marca presença em “By Flávio,” mais recente trabalho do realizador Pedro Cabeleira que passou na Berlinale no início do ano. De fato, a curta começa com a criação de uma dessas mesmas imagens. A câmara observa Ana Vilaça no papel de Márcia, uma esbelta figura de biquíni que posa diante de uma vasta paisagem balnear. É uma performance de erotismo para as redes sociais, algo reforçado quando a cena se prolonga. Descobrimos que o fotógrafo é o Flávio titular, filho pequeno de Márcia, e vemos, através de ecrãs dentro de ecrãs, como a modelo distorce o corpo antes de postar no Instagram.

Seguindo atentamente como os ‘likes’ se amontoam, estas passagens primeiras poderiam sugerir um exercício moralista contra as futilidades de uma sociedade fixada na estética acima de tudo. Contudo, Cabeleira não é cineasta de lições morais e “By Flávio” depressa nos complica a interpretação. O centro da fita é um encontro entre Márcia e um rapper famoso na internet, um jogo de gato e rato em que nunca percebemos bem quem é o predador e quem é a presa. Se ele a quer usar para o sexo, ela quer a fama. São os dois desonestos, mas num panorama onde a imagem reina suprema, quiçá o subterfúgio seja uma forma cínica de ser sincero.

Acima de tudo, “By Flávio” triunfa no repudio de dicotomias narrativas, triunfando pelo laconismo, pela efemeridade e franqueza. Mesmo que a resolução desiluda, a fala final é forte e ainda mais impressionante é o primor fotográfico de Leonor Teles enquanto diretora de fotografia. O trabalho exemplifica como um filme sobre superficialidades não tem que ser superficial, uma fita sobre banalidade não há que ser banal.

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© Sasha Litvintseva & Beny Wagner

CONSTANT de Sasha Litvintseva e Beny Wagner

“Monstros, Medidas e Metabolismos” é um projeto multimédia de Sasha Litvintseva e Beny Wagner que começou em 2020 com “A Demonstration.” Neste contexto, “Constant” emerge como o segundo capítulo do trabalho, afigurando-se em forma de filme-ensaio sobre a questão das medidas. Um tratado sobre o conceito do metro pode não parecer um assunto muito cinemático, mas a dupla de realizadores retorce o seu meio artístico até alcançar um esplendoroso equilíbrio entre a sétima arte e seu sujeito escolhido. Longe de seco e frio, “Constant” é uma caixinha de surpresas capaz de converter a obscura História do metro numa experiência digna do grande ecrã.

Entre peritos modernos e memórias da Revolução Francesa, a codificação de medidas para compreender o mundo torna-se num veículo para a transcendência. Através do específico se descobre o universal e “Constant” é prova disso. Ao detalhar erros e angústias, tentativas de emendas e distintas noções do método democrático, os artistas expandem os horizontes da fita, desde confusões nas leis de propriedade até à indagação filosófica sobre nosso lugar no plano da existência. O que mais espanta, contudo, é a flexibilidade cinematográfica, usando truques de câmara e animação para distorcer a imagem e conjugar aquilo que se julgaria impossível, incompatível.

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Entre análises de longas e críticas a curtas, crónicas e mais, a nossa cobertura do 19º IndieLisboa continua. Não percas!

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