Les garçons sauvages IndieLisboa

15º IndieLisboa | Les garçons sauvages, em análise

Les garçons sauvages”, a primeira longa-metragem do francês Bertrand Mandico, é uma endiabrada história com a aparência de um alucinatório pesadelo psicossexual. O filme é também um dos títulos inseridos na Competição internacional da 15ª edição do IndieLisboa.

Bertrand Mandico é um artista plástico francês cujo currículo já inclui trabalhos fotográficos, várias exposições de mixed media, dezenas e dezenas de curtas-metragens e, finalmente, uma longa-metragem que chegou aos circuitos dos festivais de cinema no ano passado. De certo modo, os seus temas e construções estéticas têm-se mantido curiosamente coerentes e mesmo imutáveis para um realizador tão facilmente denominado “experimental”, sendo que o corpo humano está sempre no centro dos trabalhos de Mandico. Mais especificamente, o corpo humano enquanto objeto, adereço a ser manipulado, explorado, dissecado e desconstruído pelo artista é o principal objeto de estudo do artista, havendo quase sempre uma ênfase dado a questões de género e sexualidade.

“Les garçons sauvages”, essa tão esperada estreia no panorama das longas-metragens, não foge à regra. Para quem nada conhecer do trabalho de Mandico, o filme irá certamente revelar-se como uma experiência de descoberta alucinatória, uma viagem desconcertante pelo universo e imaginário de um artista cheio de peculiares ideias sobre o corpo. Contudo, basta haver uma breve familiaridade com o trabalho do cineasta para que o espectador chegue ao filme com uma perspetiva muito diferente. É que, no contexto da oeuvre de Mandico, este filme não traz muito de novo. Pelo contrário, parece ser a reciclagem de muitas ideias já exploradas em inúmeras curtas-metragens, muitas das quais ofuscam este filme com a sua qualidade superior de modo tão óbvio que é quase vergonhoso.

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“(…)género enquanto ditadura biológica e performance social.”

Enfim, a grande diferença entre esta longa e as curtas passadas de Mandico pode muito bem ser simplesmente a sua duração. Afinal, os trabalhos mais célebres e celebrados do cineasta, como “Prehistoric Cabaret” e a sua homenagem ao legado de Walerian Borowczyk chamado “Boro in the Box”, raramente excedem os 15 minutos. “Les garçons sauvages” por seu lado, tem quase duas horas e, infelizmente, é difícil considerar esta inflação temporal como algo particularmente positivo. Com todo este tempo a preencher, Mandico vira-se para a construção narrativa, acabando com uma estrutura mais ou menos convencional. A combinação desse modelo narrativo com a estética e estilo autoral do cineasta depressa se prova meio insustentável, resultando num filme preso numa cíclica repetição de ideias, tanto a nível de texto como de forma.

De forma mais concreta, esta é a história de um grupo de cinco rapazes que se deixam dominar pelos seus impulsos mais animalescos, deixando-se cair na indulgência da violência física e da agressividade sexual sem qualquer ponta de remorso ou contenção. A sua hubris, contudo, não pode durar para sempre, e um ataque sórdido perpetrado contra a sua professora de literatura resulta na prisão e julgamento dos rapazes. Apesar dos mecanismos judiciais não castigarem diretamente os criminosos juvenis, os pais deles começam a procurar uma solução para a monstruosidade latente no comportamento de seus filhos. É assim que o misterioso capitão entra em cena, trazendo consigo uma filha formosa e um outro rapaz, culpado de crimes ainda maiores que aqueles dos protagonistas, mas que, devido aos esforços do capitão, parece ter-se tornado na mais dócil das criaturas.

É assim que o quinteto adolescente se vê confinado aos domínios do capitão, que os leva numa viagem marítima que eles tão cedo não esquecerão, quer seja pelos maus tratos do adulto dominante quer seja pela rígida dieta de frutos peludas. O destino de tal odisseia é uma ilha, onde crescem plantas fálicas e outra vegetação reminiscente de órgãos sexuais animais. Aí, os impulsos mais hedonistas dos rapazes parecem ser levados ao limite, mas o aparecimento de uma misteriosa figura andrógina pressagia uma mudança miraculosa que está prestes a ocorrer. Certa manhã, depois de uma noite de revelia bacanal, os rapazes descobrem que os seus corpos estão a mudar, seus genitais masculinos caem e no seu peito crescem seios. É esse o segredo para a cura de agressividade promovida pelo capitão, tornar corpos masculinos em femininos.

O enredo imaginado por Mandico ainda inclui mais reviravoltas, esquemas de cientistas loucos e até uma violação coletiva perpetrada por um grupo de marinheiros, mas acima de quaisquer questões textuais existe, como é evidente, a abordagem do cineasta enquanto realizador. Como já é seu costume, Mandico brinca com as questões de género, mesmo na esfera do casting, escolhendo atrizes adolescentes para interpretar os rapazes titulares e sua musa Elina Löwensohn, como a misteriosa autoridade andrógina da ilha. A ajudar as atrizes na sua ilusão de violenta hipermasculinidade, Mandico dá muito uso a genitais prostéticos. Pelo final, um espectador quase que se indaga sobre qual a percentagem do orçamento somente dedicada a falos falsos. Se somarmos as próteses, as plantas pseudo penianas e a arquitetura de umas docas muito reminiscentes de Fassbinder, há que concordar que a percentagem é capaz de até ser relativamente elevada.

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“(…)uma besta solitária tão pronta a encantar o espetador como a aliená-lo(…)”

Não que as loucuras estilísticas de “Les garçons sauvages se resumam somente a genitais removíveis e peculiares escolhas de elenco. Todo o filme tem a aparência de uma fusão experimental entre as curtas de Kenneth Anger, o já mencionado Fassbinder e os devaneios semi arqueológicos de Guy Maddin. Este é um filme feito para parecer um artefacto de outra época, talvez até de outra realidade, usando técnicas rudimentares, composições e estilos do cinema mudo e deliberadamente levando o seu artificialismo a extremos. Paradoxalmente, todas estas referências fazem com que o cinema de Mandico tenha a aparência de máxima originalidade, uma besta solitária tão pronta a encantar o espectador como a aliená-lo, tão obcecado em embalar as audiências com imagens oníricas e música hipnotizante como em chocá-las com planos explícitos de um pénis tatuado e linguagem que salta entre misoginia e misandria. Por todas estas razões, “Les garçons sauvages” é uma longa-metragem incomum e valiosa, mas não deixemos que isso eleve o filme acima da sua própria qualidade, especialmente quando temos as curtas do mesmo realizador para nos mostrar modos mais eficientes e poderosos de explorar as mesmas ideias e estéticas.

 

“Les garçons sauvages” é exibido a 27 e 29 de abril, no âmbito do IndieLisboa. Para mais informações e compra de bilhetes, visita o site oficial do festival.

 

Les garçons sauvages, em análise
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Movie title: Les garçons sauvages

Date published: 26 de April de 2018

Director(s): Bertrand Mandico

Actor(s): Pauline Lorillard, Vimala Pons, Diane Rouxel, Anaël Snoek, Mathilde Warnier, Sam Louwyck, Elina Löwensohn, Nathalie Richard, Christophe Bier, Margaux Fabre, Lola Créton

Genre: Aventura, Fantasia, Drama, 2017, 110 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO

“Les garçons sauvages” é um alucinatório espetáculo de formalismo indisciplinado que, pelo caminho, tenta lidar com questões de género enquanto ditadura biológica e performance social.

O MELHOR: A conceção visual do projeto.

O PIOR: A excessiva duração do filme e sua convencionalidade estrutural enquanto narrativa.

CA

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