"Remember to Blink" | © Fralita Films

IndieLisboa ’23 | Remember to Blink, em análise

Como sempre, além dos júris oficiais, também os espetadores do IndieLisboa têm o direito de votar nos seus filmes favoritos. Na 20ª edição do festival, o Prémio do Público foi atribuído a “Remember to Blink” da realizadora lituana Austeja Urbaite. Antes de chegar à capital portuguesa, já a obra havia passado nos festivais de Varsóvia e Vilnius. Nos Prémios do Cinema Lituano, o filme até conquistou nove nomeações, incluindo reconhecimento para as suas duas coprotagonistas, as atrizes Anne Azoulay e Dovile Kundrotaite.

Em paisagem idílica, algures nos confins da França rural, um casal prepara-se para uma enorme mudança. Incapazes de ter filhos biológicos – ou pelo menos assim parece – Jacqueline e Leon recorreram à adoção. Inicialmente, terão procurado crianças no seu próprio país, mas as dificuldades burocráticas forçaram-nos a virar as atenções para o estrangeiro, para leste. Segundo a esposa, como a avó era Russa, faz todo o sentido adotar algum menino dessa região. Só que a Rússia nem é experimentada, quando há ofertas mais relativamente próximas. Na Letónia, encontra-se um adolescente disponível para adoção, mas os franceses querem alguém mais novo.

Acabam por encontrar o seu anjinho tão desejado na Lituânia, sob a forma do pequeno Rytis. Para lhes complicar a vida, leis internacionais e locais significam que, para ficarem com o moço, terão de levar para casa também a sua irmã mais velha, Karolina. Também há o problema de uma mãe viva que pode pôr problemas no processo, assim como as barreiras linguísticas entre os futuros pais e seus hipotéticos filhos. No sentido de facilitar a adaptação e depois de toda esta aventura além-fronteiras, uma estudante Lituana a viver em França ficará hospedada no lar. Ela é Gabriele e é consigo que entramos no mundo de “Remember to Blink.”

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© Fralita Films

Ela chega um dia antes dos meninos, sendo recebida pelos esposos com alguma hesitação. Ou melhor, Leon manifesta-se aberto a que tudo resulte, mas há algum desdém a brilhar no olho de Jacqueline, um comentário trocista sobre o mau francês da mulher mais nova tombando-lhe dos lábios. Esse momento perdido revelar-se-á presságio do drama vindouro. É que, apesar de uma superficial celebração das diferentes culturas, existem tenores de superioridade cultural no discurso dos franceses. Isso existe em temas idiomáticos, mas vai além disso, com uma série de micro-agressões demarcando uma barreira entre esta mãe e seus filhos.

De facto, Gabriele acaba por ser a figura maternal a quem os miúdos se apegam, despertando as inseguranças de Jacqueline que se sente forçada a interpretar um papel de mau-da-fita. A necessidade de controlar o incontrolável inspira a crispação, o ódio, mas também revela a dor escondida no seu âmago, num passado sobre o qual não se fala. Considerando esses factos, é difícil reduzir Jacqueline à figura de vilã, não fosse a perspetiva do filme tão filtrada pela subjetividade de Gabriele e os meninos. A câmara pode divorciar-se deles de vez em quando, mas seus olhares cheios de julgamento persistem, envenenando quaisquer noções de ambiguidade. Matando-as.

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Pode parecer comparação inusitada, mas “Remember to Blink” poderia ser descrito como uma subversão de “A Mão Que Embala o Berço” de Curtis Hanson, esse clássico do thriller erótico dos anos 90. Só que aqui, os paradigmas morais invertem-se, com a mãe enquanto força negativa quando comparada à ama-seca que tudo vê, qual Jane Eyre do século XXI. Assim consignam os argumentos políticos inerentes ao texto, assim como o enquadramento formal de Austeja Urbaite na realização. Contudo, o elenco complica estas ideias e a referência ao mito clássico complica mais ainda. Comecemos com esse segundo elemento, focado no uso da Górgona enquanto símbolo supremo.

Inicialmente, Medusa e suas irmãs são somente invocadas no mosaico que Leon passa os dias a construir, um monumento encomendado pelo parque local. Essa será uma das escassas ligações ao mundo exterior, fora da casa e do bosque circundante. Também é elo que liga o filme a todo um legado de crítica literária e teoria feminista, posicionando o monstro com corpo humano e cabelos serpentinos como uma manifestação primordial, a raiva de mulher tornada entidade cósmica. Mas é a raiva de quem? De Gabriele humilhada numa hierarquia de identidades nacionais? Será Karolina, rebatizada Caroline por uma mãe desejosa de apagar a Lituânia da sua família? Será Jacqueline?

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© Fralita Films

São todas elas, transformadas pelo ressentimento que lhes fermenta a alma, uma escalada de maldizeres engolidos e tiranias domésticas que vão fazendo a pressão subir. Chegado o clímax, todo o ambiente é como uma bomba pressurizada, pronta a explodir a qualquer momento. A imagética bucólica ajuda através da fotografia de Julius Siciunas e o cenário natural habitado por cobras de todos os tipos e mais alguns. A beleza modula a fúria sem a contrariar, quiçá até a evidencia até ser quase palpável. Contudo, voltamos à questão dos atores e o que eles fazem com o material, o modo como o ajustam, transformam.

O drama de Gabriele e Jacqueline traduz-se numa relação elétrica entre as atrizes principais, toda a cena partilhada convertida num campo minado. Como a estudante lituana, Dovile Kundrotaite projeta inocência sem se deixar cair no cliché, deixando ampla oportunidade para revelar algo sinistro nas passagens finais. Por seu lado, Anne Azoulay delineia os estilhaços cortantes que compõem a alma de Jacqueline, fazendo-nos entender sua capacidade para derramar sangue e sua fragilidade também. Junte-se a isso o trabalho dos atores criança e temos a receita feita para um ataque de ansiedade em câmara lenta. Em análise final, “Remember to Breathe” força demasiado o símbolo sem fazer muito com ele e não será tão profundo quanto poderia ser. Dito isso, há valor no exercício, na angústia provocada, neste conto de mães e filhos presos numa espiral destrutiva com travos de tragédia clássica.




Remember to Blink, em análise
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Movie title: Remember to Blink

Date published: 9 de May de 2023

Director(s): Austeja Urbaite

Actor(s): Dovile Kundrotaite, Anne Azoulay, Inesa Sionova, Ajus Antanavicius, Arthur Igual

Genre: Drama, 2022, 109 min.

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

Apesar das estilizações austeras em modos típicos do cinema artístico europeu, é fácil entender o que cativou o público do IndieLisboa em “Remember to Blink.”  O filme de Austeja Urbaite coloca o dedo na ferida de uma Europa onde desigualdades entre nações se sentem além do nível económico, inspirando conflitos culturais em praça pública e zona íntima. Fazem-se apelos aos símbolos do passado clássico, seus pesadelos femininos, mas é o trabalho de ator que mais valoriza o projeto.

O MELHOR: Anne Azoulay e Dovile Kundrotaite, com grande admiração para os atores mais novos também. Aplausos para os pequenos Ajus Antanavicius e Inesa Sionova.

O PIOR: No fim, a bomba rebenta em silêncio, abafada por uma conclusão que pouco conclui em termos emocionais. Ficamos a querer mais, tal como desejamos que a crítica sociopolítica fosse além das mesquinhices neste campo de batalha doméstico. Também o assunto da Górgona nos parece padecer de algum subdesenvolvimento.

CA

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