IndieLisboa ’21 | Rio da Prata, em análise
“Rio da Prata”, também conhecido como “Silver River”, é um dos clássicos selecionados na secção Director’s Cut do IndieLisboa 2021. Esta obra de Raoul Walsh é um western cínico com Errol Flynn e Ann Sheridan nos papéis principais.
Durante a Guerra de Secessão, um militar da União é deixado na posse de um milhão de dólares. O dever do soldado Mike McComb é proteger os fundos militares, mas a investida repentina do inimigo precipita o pânico. Para que os Confederados não tomem posse do dinheiro, McComb desobedece às ordens e pega-lhe fogo. A decisão custar-lhe-á o cargo e a honra, mas, no calor do momento, não há outra escolha possível. Ao filme “Rio da Prata”, essa escolha fogosa pontua uma sequência inicial sublime com a portentosa imagem de notas em chamas, toda uma fortuna esvanecendo num inferno de labaredas e fumo escuro.
A câmara de Raoul Walsh, até então irrequieta no encadeamento de toda a ação belicosa, deixa-se ficar na imagem. De certa forma, é como se a montagem de Alan Crosland Jr. estivesse a suster uma respiração, deixando o espetador na presença desse símbolo portentoso, o capital destruído. Ao longo da narrativa de “Rio da Prata”, muito os homens vão fazer por ganhar dinheiro. McComb pode começar a fita a destruir riquezas, mas a sua subsequente vida é definida pela procura desta, pelo acumular e a perda também. Esta é a sua história, a ascensão e queda de um titã numa América que luta para renascer das cinzas.
Baseado numa história de Stephen Longstreet, “Rio da Prata” marca a última colaboração entre Raoul Walsh e Errol Flynn. Ao longo da década de 40, os problemas com alcoolismo do antigo Robin Hood tinham deteriorado a sua reputação dentro do sistema dos grandes estúdios da Velha Hollywood. Gradualmente, a Warner Bros. deixou de saber o que fazer com a estrela em declínio e só um dos seus realizadores parecia capaz de capitalizar nos charmes ossificados de Flynn. Trabalhando numa série de westerns e filmes de guerra, aventuras belicosas e violentas, Raoul Walsh foi dando nova vida à carreira do ator, mas nem ele era capaz de atrasar o inevitável.
Chegada a rodagem de “Rio da Prata”, a relação entre os dois tinha também ela esmorecido, o profissionalismo de outrora ressacado num ressentimento animoso. Talvez por isso, a trama do filme e o modo como o protagonista é filmado apontem sempre para a podridão que se esconde atrás da beleza de herói das matinés. Tal como Flynn se perdia em espirais de autodestruição atrás das câmaras, também a personagem de Mike McComb passava pelos mesmos tormentos. Em certa medida, estes fatores contribuem para a reputação menor que “Rio da Prata” tem em relação aos outros filmes da dupla Walsh e Flynn.
Por outro lado, há uma perfídia acutilante na fita, uma dissecação feroz da narrativa e seus figurões, ideias e ideais de heroísmo. Para Walsh, o cinema era ação, ação e mais ação, mas a estrutura soluçada deste épico contraria o impulso cinético. Depois de primeiros capítulos aventurosos, a história acalma e esmorece, fermentando suas inseguranças e ansiedades em cenas cheias de diálogo, filmadas em interiores bafientos, símbolos arquitetónicos de um esplendor insustentável. Diálogo e psicologia não eram os pontos fortes de Flynn enquanto intérprete, sendo que ele era sempre um ator mais virado para as expressividades do físico.
Em consequência disso mesmo, todo ele trespassa desconforto na segunda metade do épico, como que acorrentado pelo fado da personagem e suas demandas dramatúrgicas. A impotência, incapacidade para mudar esse estado infeliz, produz um tenor trágico, tanto a nível do drama convencional como da metatextualidade. Sentimos a vontade do movimento, mas há uma força que o interrompe, contendo energia até ao ponto em que toda a fita parece pronta a explodir numa supernova de celuloide rebentado. Ao nível de performance, tais qualidades manifestam-se no desempenho necrótico de Flynn, uma alma fermentada em ambições corrosivas, envenenada pela prata.
Também há que se referir o desdém desapontado de Ann Sheridan, uma espécie de grande dama narcotizada do western épico. No elenco secundário, Thomas Mitchell é esperança coagulada, álcool que pega fogo e cospe dignidade queimada. Não querendo insultar nem os atores ou o texto, contudo, o que mais brilha em “Rio da Prata” são as escolhas de Walsh enquanto realizador. É o modo como ele enquadra Errol Flynn de modo a realçar a vacuidade de McComb, afigurando-o como um Barry Lyndon para o Velho Oeste ou, quiçá, um Charles Foster Kane cujo carisma se decompôs antes de a câmara o apanhar. Há uma grandiosidade fracassada que Walsh confere à personagem, edificando sua presença na medida de um rei da derrota.
É fascinante ver como este cocktail de ansiedades do pós-guerra se mistura com a iconografia do western, como a mão de Walsh ocasionalmente perde a paciência com as personagens e espicaça os ritmos do drama com facas formalistas. Quando uma tensa conversa a dois é interrompida pela entrada de terceira figura, ao invés de cortar ao ritmo do diálogo ou do som, o cineasta atira a câmara para fora do eixo, como que saltando também o ecrã com o choque do intruso. Há muitos momentos assim a interromper a solenidade do “Rio da Prata”, pequenos choques de modernidade que eletrificam todo o edifício cinematográfico.
Raoul Walsh fez carreira na esfera comercial de Hollywood, mas jamais ganhou o culto que outros seus colegas conseguiram em retrospetiva. Isso é verdade, mas não significa que o seu trabalho não vibrasse com o desejo da modernidade, de correr na direção de um formalismo mais moderno. Vendo os títulos que ele assinou desde o tempo do mudo ao crepúsculo nos anos 60, há uma inefável vitalidade no seu cinema. Todas as contenções deste western épico dão continuidade a essa mesma visão de Walsh, esta leitura do legado desse misterioso homem que, sentado na carreira de realizador, examinava o plateau com a vista meio toldada por uma pala. Apesar de ser muito menosprezado na filmografia do seu autor, “Rio da Prata” é uma das mais puras e genialmente imperfeitas ilustrações deste seu apelo enquanto criador.
Rio da Prata, em análise
Movie title: Silver River
Date published: 28 de August de 2021
Director(s): Raoul Walsh
Actor(s): Errol Flynn, Ann Sheridan, Thomas Mitchell, Bruce Bennett, Tom D'Andrea, Barton MacLane, Monte Blue, Jonathan Hale, Al Bridge, Arthur Space
Genre: Romance, Western, Drama, 1948, 110 min
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
Um épico do fracasso e da derrota, “Rio da Prata” tenta ser romance, western e filme de guerra. Tão ambicioso como seu protagonista e tão desgraçado também, o trabalho fascina e empolga aquele que esteja disposto a sintonizar-se com suas tonalidades ácidas, a amargura que corre nas veias do organismo cinematográfico. No fim dos seus anos de glória, Errol Flynn mostra ser um anti-herói perfeito para o universo amargo de Raoul Walsh.
O MELHOR: O prólogo que termina com o dinheiro a arder, a química antirromântica de Flynn e Sheridan, o modo como a narrativa jamais perde uma oportunidade para salientar as sombras que vivem nas margens de cada triunfo.
O PIOR: Apesar de empolgante, confessamos que a amargura deste “Rio da Prata” não é fácil de engolir. Isso e uma estrutura meio caótica impedem a obra de subir ao panteão máximo de Raoul Walsh. Na sua presente forma, trata-se daqueles filmes mais feitos para ser apreciados com respeito do que amados com paixão.
CA