"Shiva Baby" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’21 | Shiva Baby, em análise

“Shiva Baby” de Emma Seligman é um dos melhores filmes em competição no IndieLisboa de 2021. Esta comédia frenética transcende os limites do nervosismo, manifestando um teatro de humilhação que deixa o espetador exausto e extasiado.

Nos últimos anos, vários cineastas do panorama indie americano têm vindo a aventurar-se por um estranho género. São filmes perdidos algures entre a farsa e a tragédia, monumentos de ansiedade que são quase ataques de pânico em forma de cinema. Talvez o exemplo mais vistoso desta tendência seja o “Diamante Bruto” dos irmãos Safdie, mas há numerosos outros títulos que seguem o mesmo ímpeto dramático. Pensemos na obra integral de Trey Edward Shults, a “Liberdade” de Kirill Mikhanovsky, a “Mãe!” de Aronofsky e os muitos estudos de personagens à beira do abismo que Alex Ross Perry tem vindo a produzir.

A esta crescente lista podemos agora acrescentar “Shiva Baby”, a primeira longa-metragem realizada e escrita por Emma Seligman. Trata-se da história de um dia infernal, quando a jovem Danielle se vê encurralada num pesadelo social inconcebível. Quando a conhecemos, a jovem estudante universitária judia está a despedir-se de um amante que lhe serve como “sugar daddy”, patrono lascivo e seu habitual cliente. Na missão da rebeldia contra os valores da classe média edificados por seus pais, Danielle segue uma vida paralela aos seus estudos, trocando sexo por dinheiro.

shiva baby critica indielisboa
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A mera sugestão de tal esquema seria suficiente para escandalizar os parentes ao ponto de um ataque cardíaco fulminante. Por falar em morte, a maior parte de “Shiva Baby” passa-se num funeral shivá. Depois de dizer um adeus apressado a Max, o homem mais velho que a sustenta, esta caótica rapariga vai rumo aos subúrbios Nova-Iorquinos onde os pais são parte da comunidade congregada para um funeral tradicional judaico. Danielle nem conhece o falecido, mas os laços de pressão familiar são muito fortes e não há nada mais devastador que a crítica de um pai irritado.

Por muito que os apressados afazeres do primeiro ato nos possam ter indicado uma trama nervosa, nada se compara ao cataclismo que está prestes a ter lugar durante os ritos fúnebres. Entre comentários cruéis vindos de uma infinidade de parentes distantes, Danielle dá de caras com algumas caras do passado que preferia esquecer. A principal fonte do tormento é a ex-namorada dela, mas outras figuras se precipitam sobre os festejos solenes. Acontece que Max é um dos convidados, descalabrando uma montanha de mentiras que os dois amantes tinham contado um ao outro.

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Parece que ele é casado e até tem um bebé, enquanto ela é mentirosa também. Max achava que Danielle era uma estudante de Direito em necessidades financeiras, mas suas intenções e planos para o futuro são muito mais incertos. Para piorar a situação, a ex está a farejar o escândalo que se afigura, enquanto a mãe da protagonista lhe tenta arranjar trabalho a cuidar do fedelho de Max. Uma coisa é certa, sempre que pensamos que a situação não pode descambar ainda mais, estamos terrivelmente equivocados. Apesar de o filme ter somente 77 minutos, Seligman tece uma complicada tapeçaria de farsa social justaposta com humor judeu e muito desconforto inter-geracional.

Deixando a câmara cambalear por uma casa atolada de gente, capturando grandes planos tremidos de caras suadas e muita irritação, a cineasta concebeu uma experiência que sufoca. Tal como Danielle, sentimos o retorcer da tensão até que queremos fugir do cinema e de toda a confusão. A montagem de Hanna Park sublinha essa qualidade e, juntamente com a sonoplastia de Hunter Berk, conduz a audiência para um tipo de experiência definida pela subjetividade delirante da protagonista. Estamos sempre ao lado da heroína, encurralados no seu estado mental, claustrofóbicos e endoidecidos.

shiva baby critica indielisboa
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Contudo, Seligman sabe como promover necessária distância, uma vaga alienação que nos deixa rir da aflição alheia. Ela fá-lo principalmente através dos ritmos precisos do diálogo, o modo como palimpsestos verbosos caem uns em cima dos outros criando uma sinfonia hedionda de conversas meio abortadas. A especificidade do milieu social também dá estrutura ao filme, dando a entender uma ordem ritualista que as personagens vão quebrando, mesmo que só por acidente. Acima, de tudo, é com o trabalho de ator que a realizadora ancora o humor e lhe dá uma carga elétrica.

Com a ajuda da diretora de casting Kate Geller, Seligman reuniu aqui uma equipa de atores sem igual. Muitos são caras conhecidas da televisão e do cinema independente, mas todos aqui dão aquelas que podem ser as performances de uma vida. No papel principal, Rachel Sennott é um triunfo de comédia em estado de crise. Ao longo do filme, Danielle tem de existir num constante estado de negociação e mentira, elaborando desculpas e justificações, engasgando-se em medo e frustração, em comida e muitas palavras engolidas a seco. Com isso dito, suas melhores passagens são aquelas em que Danielle quase congela, desassociando-se do presente e caindo em apatia farsola.

Quando nos movemos para o elenco mais secundário, a qualidade das prestações só aumenta. Se forçados a selecionar o melhor intérprete do filme teríamos de escolher a brilhante Polly Draper. Como Debbie, mãe da estudante e “sugar baby”, a atriz encontra um difícil equilíbrio entre abrasão familiar e um carinho sempre ofuscado pela insensibilidade. Quando julgamos já compreender a matriarca, apercebemo-nos que o nosso entendimento é toldado pelo estado de espírito da filha e que há profundezas inexploradas a que Draper aponta sem chamar demasiado a atenção. Tudo isso e ela é hilariante também, como, aliás, todo o “Shiva Baby” mostra ser. Pode sentir-se meio inconsequente, um pouco cliché no que se refere a escolhas estéticas, mas este é um bom candidato a comédia do ano.

Shiva Baby, em análise
shiva baby critica indielisboa

Movie title: Shiva Baby

Date published: 28 de August de 2021

Director(s): Emma Seligman

Actor(s): Rachel Sennott, Polly Draper, Fred Melamed, Danny Deferrari, Molly Gordon, Jackie Hoffman, Dianna Agron, Glynis Bell, Cilda Shaur

Genre: Comédia, 2020, 77 min

  • Cláudio Alves - 78
78

CONCLUSÃO:

Uma espiral de desassossego desenfreado explode no meio de um funeral. O evento social é como uma tempestade, ventos agrestes de pânico e julgamento deixando todos num estado de angústia. Seria fácil ver só o horror no cenário, mas a realizadora Emma Seligman descobre nela a mais pura das comédias. “Shiva Baby” faz rir até faltar o ar e dá-nos vontade de fugir do ecrã aos gritos.

O MELHOR: Polly Draper é realmente formidável, mas o argumento escrito por Seligman também merece muito louvor.

O PIOR: A brevidade é uma bênção, mas quiçá mais um pouco de desenvolvimento pessoal tivesse beneficiado a fita. Algumas figuras nunca se elevam acima do arquétipo apalhaçado.

CA

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