"Trenque Lauquen" | © El Pampero Cine

IndieLisboa ’23 | Trenque Lauquen, em análise

O enigmático “Trenque Lauquen” marca a secção Silvestre do 20º IndieLisboa com um beijo de mistério. A produção germano-argentina representa a terceira longa-metragem da realizadora Laura Citarella e já por muitos festivais passou antes de chegar a Lisboa. Sua estreia mundial foi na Bienal de Veneza do ano passado e, desde então, já ganhou inúmeros prémios, incluindo os troféus para Melhor Filme, Realização, Argumento Original e Elenco da International Cinephile Society.

Cinco anos atrás, “La Flor” apareceu no circuito cinéfilo como uma espécie de grande titã que só os mais corajosos se atreviam a confrontar. Com quase 14 horas de duração, o filme de Mariano Llinás é um épico em contante transfiguração, criado sob a alçada do coletivo El Pampero Cine. Muitos dos mesmos artistas voltaram a unir forças em “Trenque Lauquen,” realizado e escrito por Laura Citarella, produtora do filme anterior. Considerando as duas obras, este trabalho mais tardio parece quase uma curta, expandindo-se somente ao longo de quatro horas e vinte minutos.

Dito isso, preserva-se muito do mistério entre projetos, com a qualidade do cinema em constante metamorfose bem presente. Apesar das ligações a “La Flor,” convém apontar que “Trenque Lauquen” não se encontra não seguimento narrativo dela. Ao invés, estamos perante uma continuação solta de “Ostende,” onde Citarella já havia perscrutado a mitologia da mesma protagonista, também ela chamada Laura. De facto, esta edificação cinematográfica é um autêntico festival de Lauras, com o argumento escrito com a colaboração de Laura Paredes que também interpreta o papel homónimo.

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© El Pampero Cine

No passado, Paredes tem sido principalmente reconhecida como parte do quarteto de atrizes Piel de Lava cuja evolução tem sido documentada na filmografia de Llinás. Poder-se-ia mesmo dizer que “Trenque Lauquen” é canção de amor a Paredes, uma homenagem à sua pessoa enquanto fenómeno audiovisual, quiçá narratológico, talvez até metafísico. Certamente, é impossível imaginar o filme sem ela, sendo que todo o aparato depende da caracterização escorregadia que Paredes constrói, incrivelmente específica, mas também abstrata. Ela é o farrapo de fumo que tentamos conter nas mãos sem sucesso, o sonho que some da consciência instantes depois do acordar.

Ela é Laura que, ao longo de doze capítulos, vai aparecer e desaparecer, ora lembrança, ora miragem, ora algo mais. Quando a fita começa, é corpo ausente, muito procurado por dois homens inebriados de paixão. São eles Rafael e Ezequiel, unidos somente pelo seu interesse na mulher desaparecida. Conhecemo-los em missão de busca, conduzindo por vários locais na cidade de Trenque Lauquen na esperança de encontrar alguma pista. Falam com várias pessoas, muitas delas tão desamparadas quanto eles e sem qualquer informação. No entanto, pouco a pouco, colecionam-se testemunhos quais peças de um puzzle.

O problema é que não se encaixam umas nas outras e, mesmo que se encaixassem, a imagem montada seria mais uma incógnita, uma abstração. Nem Citarella nem Paredes estão interessadas em fornecer respostas fixas, mas não se importam de induzir em erro via um beco sem saída. O primeiro desses cul-de-sac narrativos dá-nos novo contexto sobre a convicção de Ezequiel, detalhando o processo pelo qual se apaixonou por Laura. Entenda-se que, em alguns mercados, os doze capítulos de “Trenque Lauquen” foram separados em duas partes projetadas em separado.

A primeira dessas metades deixa-se levar muito pela perspetiva de Ezequiel, cujas memórias nos deixam descobrir Laura, manifestando-a pela primeira vez em frente à câmara. Conhecemos então a mulher-mistério no momento em que ela se perde num mistério também, tendo encontrado cartas de cariz erótico escondidas em livros da biblioteca local. Pesquisando os títulos doados na história da instituição, ela desvenda toda uma correspondência entre uma professora argentina e um qualquer sujeito em Itália. Neste paradigma, a história de detetives protagonizada pelos dois homens, torna-se num romance meta-textual.

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Aqui, assim, a decifração de uma história de amor perdida induz o florescer de amores modernos. O milagre da narrativa arqueológica transforma “Trenque Lauquen” em romance, detalhando a figura de Laura enquanto alguém definida pela curiosidade, positivamente embriagada pelo fulgor da descoberta. Tanto assim é que ela arrasta Ezequiel até às mesmas antípodas de abelhudice, espelhando relações que só sobrevivem em papel numa nova ligação estabelecida em olhares afetuosos, um beijo secreto partilhado sobre a mesa do café.

A paixão faz-se a quatro, com os fantasmas do passado manifestos no presente, ora por meios de leitura ou flashbacks dentro de flashbacks, qual matrioska em forma de montagem. É testamento à magia de “Trenque Lauquen” que também nós ficamos fixados no amor e, em jeito de espetador, também nos apaixonamos por Laura. A perspetiva de Rafael é mais limitada, focando-se num mistério botânico a que a mulher havia chegado por diligência profissional. Afinal, sua presença na cidade de Trenque Lauquen deriva da pesquisa botânica, com umas flores de espécie desconhecida motivando a investigação a fundo.

Mas é claro, nada disto nos dá respostas ao mistério central. Nunca nos é concedido uma chave capaz de abrir o cadeado entre nós e a verdade, se é que ela existe. Ao invés, deparamo-nos com um infinito de portas escancaradas, cada uma um caminho a mais portas, um labirinto sem fim à vista. Tanto assim é que, chegada a segunda parte de “Trenque Lauquen,” somos confrontados com a realidade de que, para Laura, a história vivida com Ezequiel não é algo assim tão importante. Mais de duas horas dentro da epopeia, parece que os cineastas declaram tudo o que veio antes anódino, espelhando um choque devastado na expressão de Ezequiel.

Não há tempo para nos perdermos em melancolias do amante desiludido, havendo mais um mistério a considerar, este relatado pela própria Laura num monólogo gravado em estação de rádio. Assim se abre outra matrioska, esta capaz de levar “Trenque Lauquen” até aos limites do género, trespassando o drama realista para esticar as mãos na direção da fantasia, o terror, até um sussurro de ficção-científica. Também há novo romance, ou quiçá a forma primordial do sentimento, confundido pela ideia de que querer estar com alguém, pode ser variação de querer lugar no seu mundo, ou desejar ser essa pessoa por inteiro.

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© El Pampero Cine

Choca-se então com uma das ideias basilares nesta história tão embevecida pela ideia de contar histórias. Referimo-nos àquele amor que o ser humano tem por encontrar respostas para tudo, seu vício do mistério como se a incógnita alheia se proporciona uma liberação da vida mundana. Laura é sempre compreendida em termos de investigação, seja ela quem tenta resolver o puzzle ou o puzzle que outros tentam resolver. Entendemos que houve uma transição dos dois estados, fora da periferia narrativa de “Trenque Lauquen.” até que, num gesto audaz, o filme dedica o seu último capítulo à perspetiva de Laura.

Violada a ordem do universo, essa regra pela qual a mulher-mistério é sempre encarada através do prisma da recoleção ou do artefacto, a própria linguagem da fita se altera. A fotografia digital sem graça muda de formato e textura, dando propósito à simplicidade inicial. O som aprofunda num novo paradigma de silêncios, a palavra renegada quando a contemplação se coroa rainha. Só que, mesmo aqui, o momento da transição é oculto num movimento de câmara. Ou talvez seja o movimento de câmara que, em estilo reenquadramento, transforma a realidade projetada na tela.

Para alguns, esta incógnita eterna será frustrante, mas parece-nos ser o final golpe de génio do filme. Se há algo que “Trenque Lauquen” nos ensina é quanto a pessoa se afeiçoa à ideia de um mistério, que nos perdemos de amores no labirinto cuja resolução não é tão prazerosa como o passeio. A rendição derradeira dos cineastas propõe um jogo sem fim, algo que se estende além da sala de cinema. Deixemos, portanto, que os mistérios de Laura coalhem no nosso pensamento. Façamos da nossa imaginação seu novo lar, casa eterna em que um milhão de outras histórias poderão nascer, ser contadas e recontadas. Seja esse o milagre da intrépida mulher-mistério.




Trenque Lauquen, em análise
trenque lauquen critica indielisboa

Movie title: Trenque Lauquen

Date published: 29 de April de 2023

Director(s): Laura Citarella

Actor(s): Laura Paredes, Ezequiel Perri, Rafael Spregelburd, Verónica Llinás, Elisa Carricajo, Juliana Muras, Cecilia Rainero

Genre: Drama , Mistério, 2022, 260 min.

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

“Trenque Lauquen” constrói-se sobre um dos mais fascinantes argumentos originais dos últimos tempos, um estudo sobre o ato de contar histórias e investigar mistérios. Metamorfoseando-se através do género e da perspetiva, o filme conta um conto cujo fim não existe, um buraco negro que nos puxa para dentro e consome. Ah, mas que delícia é esta queda na escuridão que nos come. Quiçá não sejam sombras que nos envolvem, mas luz. Sim, “Trenque Lauquen” é luz e nós somos como traças ou mosquitos, apaixonados pelo clarão.

O MELHOR: O capítulo final, o movimento de câmara, a caracterização escorregadia de Laura Paredes no papel do mesmo nome.

O PIOR: A duração distendida vai frustrar muita gente, mas sempre assim é quando enveredamos além do mainstream para as antípodas do slow cinema.

CA

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