15º IndieLisboa | 3/4, em análise

3/4” de Ilian Metev ganhou o prémio da secção Cineastas do Presente na última edição do festival de Locarno e chega agora à competição internacional do 15ª IndieLisboa.

“¾” é uma fração, três partes de um todo dividido em quatro. Ou seja, por definição, é algo incompleto. Assim é também a família à volta da qual a primeira longa-metragem narrativa do cineasta búlgaro Ilian Metev se desenrola. Todor é um astrofísico que vive nos subúrbios com os seus dois filhos e que, apesar de não ser um pai negligente ou ausente, nunca se sente tão confortável na companhia das crianças como se sente entre outros académicos. Mila, a filha mais velha de Todor é uma prodigiosa pianista que se está a preparar para uma importante audição na Alemanha, onde ela espera poder vir a estudar. Ao contrário da irmã mais velha, o jovem Niki passa o verão ora a deambular pelas ruas em busca de alguma diversão ou a incomodar a irmã com “baboseiras” sem sentido numa tentativa de a distrair dos seus estudos que, se forem bem-sucedidos, acabarão por fazer deste verão um dos últimos momentos em que os dois irmãos podem estar juntos no futuro próximo. A mãe dos dois miúdos e mulher de Todor nunca é vista, apenas sentimos o espaço vazio que ela devia ocupar. Ela morreu antes do filme começar.

“¾”, no entanto, é também um compasso musical, onde cada tempo é composto por três semínimas. Uma valsa, por exemplo, utiliza este compasso, voltando abruptamente à primeira nota depois da terceira. Música e uma família incompleta são os principais elementos pelos quais “3/4” é construído sob a forma de um jogo de ritmos e padrões, movimentos elegantes e vazios conspícuos, um perfil doméstico sobre as ligações pessoais de três personagens que flui como uma sinfonia fílmica. Acima de tudo, este é um estudo de desarmonias, como nos mostra logo a primeira cena com Niki, em que o rapaz e seus amigos se entretêm com um jogo que simplesmente consiste numa conversa em que várias palavras são aleatoriamente substituídas por ‘Shakira’. Quebras no fluir orgânico de frases, pausas abruptas numa composição, falhas no dedilhar de uma peça no piano.

3/4 critica indielisboa
“(…)3/4 é construído sob a forma de um jogo de ritmos e padrões(…)”

Outra consequência do jogo, é que essas quebras verbais isolam os segmentos separados da conversa, segmentando-a. Também a família está segmentada e seus elementos isolados, algo que a construção cénica de Metev está sempre a sublinhar. Veja-se, por exemplo, uma específica cena casual em que os dois irmãos caminham pela rua. Aí, filmando os seus sujeitos de frente com a câmara a recuar consoante o movimento das crianças, o realizador insiste em separar os Niki e Mila em dois planos médios. Mesmo considerando que “3/4” é apresentado no formato “4:3”, é fácil entender que, sem muito esforço, o realizador conseguiria filmar um plano médio com os dois miúdos ao mesmo tempo, sem ter de incluir peculiares doses de espaço vazio na sua composição. Existe aqui uma deliberada ação de isolar os membros da família, até quando estes estão praticamente a tocar um no outro.

Outro detalhe interessante deste e de quase todos os outros planos que acompanham os jovens protagonistas nas suas deambulações suburbanas é que Metev mantém a sua câmara obsessivamente apontada para a frente das figuras que caminham, nunca assim mostrando ao espectador o caminho que elas vão percorrer. Apenas temos ideia desse caminho quando ele se torna espaço caminhado, quando ele é relegado ao passado. Com este gesto, Metev ilustra mais uma dinâmica importante, tanto no conflito interno da unidade familiar como na construção do filme. Por outras palavras, esta é uma história que caminha para o futuro indefinido, incerto, quase ameaçador, mas que não consegue desviar os olhos do que ficou para trás.

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Quando encontramos esta família, esta encontra-se, afinal de contas, num momento de potencial mudança radical. É óbvio que Niki não quer que a irmã vá viver para outro país. O pai, que os filhos ocasionalmente tentam consolar com desajeitada inocência, parece também estar relutante em separar-se de Mila. Ao contrário do filho, contudo, Todor parece entender as ambições da filha, mesmo que não consiga nunca expressar o seu carinho ou preocupação com tanta facilidade como Niki. Por sua vez, a adolescente prodigiosa é uma perfeccionista tão obcecada com o sucesso que se parece perder nos seus próprios nervos, pondo em causa o seu trabalho no piano e alienando forçosamente o irmão. Não que a distância crescente entre essas duas figuras seja surpreendente.

Mila, há que se entender, é uma adolescente, ao passo que Niki ainda é um miúdo brincalhão. Eles são próximos, como irmãos que cresceram juntos, mas a sinfonia da vida de Mila já está mais à frente, enquanto Niki mal começou. Eles estão em desarmoniosa dissonância. Mila toca, Niki fala e Todor tudo ouve sem nada comunicar. Assim é a dinâmica destes três, assim é a sua sinfonia defeituosa, onde há uma nota, ou talvez todo um instrumento em falta. É claro que tal atitude é insustentável e a resolução desta crise de desarmonia familiar, mais ainda do que a observação ritmada de relações filiais e fraternais, parece ser o grande impulso narrativo do filme.

3/4 critica indielisboa
“Talvez seja possível ultrapassar a perda e até construir algo bom com ela.”

No final, “3/4” resolve-se com uma admissão dessa mesma dissonância e início desse referido movimento para a harmonia. O que despoleta isto é uma pequena crise, que momentaneamente se sobrepõe à crise de Mila e sua audição, e o resultado não podia ser mais claro. As próprias personagens admitem que têm de entrar no mesmo ritmo e que, mesmo com pessoas à volta, se sentem sempre sozinhas. Tal verbalização dos temas do filme é um pouco descarada, mas sob a luz do sol matinal, a cena em si é um pequeno raio de esperança, um tableau idílico que propõe que, afinal de contas, talvez o passado não tenha de definir rigidamente o presente e o futuro. Talvez seja possível ultrapassar a perda e até construir algo bom com ela. Por essa e muitas outras razões, “3/4” nunca se torna no exercício friamente matemático que a sua estruturação meio musicada e uso extremo de metáforas estruturais e simetria formalista podem sugerir. É, pelo contrário, um belíssimo retrato familiar que vibra com delicadeza e a comovente dor e ternura partilhadas entre os membros da sua família central.

“3/4” será exibido a 2 e 4 de maio, no âmbito do IndieLisboa. Para mais informações e compra de bilhetes, visita o site oficial do festival.

3/4, em análise
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Movie title: 3/4

Date published: 23 de April de 2018

Director(s): Ilian Metev

Actor(s): Mila Mihova, Nikolay Mashalov, Todor Veltchev, Simona Genkova, Kaloyan Georgiev, Alexander Kurtenkov, Bono Lungov, Petar Matev, Teodor Velinov

Genre: Drama, 2017, 83 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO

“3/4” é uma delicada composição sobre uma família a enfrentar os ventos de mudança inevitável que vêm com o crescimento da sua filha mais velha. É também um retrato da dor da perda da figura maternal que o realizador Ilian Metev compõe e estrutura com precisão matemática e invejável graciosidade. A documentação do amor e dependência de dois irmãos é particularmente estupenda.

O MELHOR: Um plano que, apesar de não ser tão tematicamente importante como outros referidos anteriormente, é de uma beleza extrema. Trata-se de um travelling que acompanha o jovem Niki por uma rua deserta e solarenga. Nesta imagem e neste gesto está cristalizada a serenidade de uma tarde de verão preguiçosa, mas na queda inesperada de um ramo de uma árvore temos uma belíssima quebra rítmica. É essa racha na superfície de outro modo perfeita deste plano que se encontra a sua suprema beleza e elegância.

O PIOR: O uso de não-atores é tão bom como mau, dependendo da cena. Nikolay Mashalov, por exemplo, é ótimo em cenas de improviso ou brincadeira, mas mostra fragilidades em momentos mais textualmente pesados.

CA

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