"It: Capítulo 2" | © NOS Audiovisuais

It: Capítulo 2, em análise

27 anos depois dos eventos do primeiro filme, os miúdos de “It” já são adultos e estão de regresso à sua terra natal para confrontar novamente o palhaço mais assustador do grande ecrã.

No panorama da ficção de terror, raro é o antagonista que quer realmente assustar as suas vítimas. O medo é normalmente um efeito colateral da caça de um assassino em série ou da vingança de um espírito rancoroso. O vilão titular de “It” é, portanto, uma anomalia. Segundo o livro de Stephen King, essa entidade sem nome que gosta de tomar a forma do palhaço Pennywise é uma criatura cósmica de idade antiquíssima, um devorador de mundos que caiu na Terra e vê os seres humanos como presas. Para It, amedrontar as vítimas é como salgar a carne, visto que, segundo si, pessoas aterrorizadas têm melhor sabor. É por isso também que It ataca crianças. Elas são mais fáceis de apanhar e os seus medos são simples, em contraste com as angústias complicadas dos adultos.

Essa mesma diferença, entre a qualidade primordial de medos infantis e a complexidade da psique adulta, separa as duas partes dos filmes “It”. Há uma simplicidade poderosa na história de um grupo de miúdos a confrontar uma personificação do Mal. De facto, até na forma de livro, as passagens protagonizadas por crianças são, na sua maioria, superiores àquelas que se centram nas personagens já crescidas. Com isso dito, o romance ganha o seu peso temático através da alternância entre passado e presente, concebendo um retrato de como traumas infantis se metastizam em ansiedades adultas, de como as feridas psicológicas da meninice nos definem o rumo da vida e, por vezes, nunca cicatrizam por completo.

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Além do mais, “It” é uma potente crítica da sociedade americana contemporânea à sua escrita. Tanto assim é que se pode dizer que o vilão da obra não é simplesmente o monstro que toma a forma de Pennywise, mas toda a cidade de Derry em Maine, seus preconceitos homofóbicos e racistas e capacidade para desviar os olhos dos horrores sofridos pelos mais indefesos. Essa qualidade da obra está mais explicitamente presente nas passagens adultas e é o seu contraste com o binário moral da juventude que dá forma ao esqueleto concetual da história. Curiosamente, quase o oposto acontece nos filmes. A uma primeira análise, isto pode parecer estranho. Afinal, “It: Capítulo 2” começa com um homem gay a ser espancado por um grupo de rufias e atirado para um rio. O evento é baseado num crime real e certamente pinta a própria sociedade de Derry como algo monstruoso.

O problema é que, tirando estas cenas em que o subtexto é tornado texto, a sequela não cria o mesmo tipo de atmosfera opressiva do primeiro filme. Nesse pesadelo juvenil de 2017, há sempre um forte sentido de espaço e de um mundo a rodear e estrangular os protagonistas, quer seja através de figurantes ominosos no fundo de cenas ou a presença tóxica de famílias disfuncionais. O legado de todo esse horror está patente neste segundo capítulo, mas as personagens parecem isoladas e descontextualizadas. A excisão quase absoluta de duas figuras que ligam os membros do Losers Club ao mundo exterior a Derry contribui muito para esta sensação, se bem que não podemos culpar os cineastas por quererem encurtar a narrativa. Com quase três horas, este épico de terror não precisa de mais acrescentos a insuflar a sua já cansativa duração.

Apesar de tudo isto, temos de aplaudir os esforços da equipa de “It: Capítulo 2”. O livro de Stephen King é uma obra densa e de difícil tradução cinematográfica. Esta adaptação está longe de ser perfeita, mesmo considerada independentemente do livro, mas o nível de dificuldade do projeto é imenso. Há problemas estruturais à vista, demasiados flashbacks, há excesso de efeitos digitais, carência de sustos genuínos e um subenredo que podia ter sido facilmente cortado, mas, por cada fragilidade, o filme tem duas ou três mais-valias para compensar. Tal como acontece com o primeiro capítulo, o grande trunfo de Andy Muschietti é o seu elenco. Aqui ele é composto por versões adultas e juvenis do elenco principal, assim como pelo extraordinário Bill Skarsgård no já icónico papel de Pennywise. O palhaço pode ter muito menos tempo em cena nesta sequela, mas o seu impacto continua a sentir-se vivamente.

Em relação ao casting dos membros adultos do Losers Club, estamos perante um triunfo do mais alto gabarito. Como Bill, o líder do grupo, James McAvoy é uma presença em constante tensão e desconforto. A gaguez da meninice continua a marcar presença na vida adulta, mas é o peso da culpa que Bill carrega desde a morte do irmão que realmente define a personagem. Jessica Chastain dá vida a Beverly e tem para si o papel mais carnudo do elenco. Esta é uma mulher que passou a juventude a ser vítima de um pai abusivo e, quando cresceu, acabou por ir parar às mãos de um homem semelhante, sendo agora vítima da violência do seu marido. Além disso, como foi a única pessoa a ver a forma verdadeira de It e a sobreviver para contar a história, Beverly está particularmente traumatizada. Em certas passagens, Chastain parece mesmo paralisar com o medo que consome a sua personagem.

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Bill Hader, como o comediante Richie Tozier, também nos mostra bem o potencial paralisante do medo, mas é na sua mistura de tragédia e humor que está a sua maior contribuição ao sucesso do filme. As angústias pessoais de Richie são só sugeridas pelo livro, mas “It: Capítulo 2” torna-as óbvias e deixa que o ator as confronte. Se Skarsgård foi a grande revelação do primeiro filme, Hader é o campeão da sequela. Como o hipocondríaco Eddie, James Ransome não tem tanto material como Hader e o filme parece muito menos interessado em minar as suas particulares psicoses. Com isso dito, o ator é quase assustador no modo como perfeitamente nos “vende” a ideia de uma versão crescida de Jack Dylan Grazer. Jay Ryan é Ben, que emagreceu e encontrou sucesso desde a infância, mas ainda carrega consigo as ansiedades de um rapaz gordo que sempre temeu ir morrer sozinho. Andy Bean e Isaiah Mustafa, como Stan e Mike, têm papéis mais pequenos, mas não deixam de ser excelentes escolhas de casting.

Devido a este elenco, “It: Capítulo 2” acaba por funcionar muito mais como um estudo de personagem do que como um épico de terror. Quando o grande confronto entre Pennywise e os heróis tem lugar, não é a ação monumental que arrebata o espectador, mas sim o modo odioso como o monstro usa as partes mais frágeis das suas vítimas como armas para as destruir. Chegado o momento da sua potencial derrota, a audiência já não sente medo por Pennywise, mas sim raiva e repugna. Muito se perde na tradução do livro para o cinema e até do primeiro filme para este segundo capítulo, mas o amor que sentimos pelo Losers Club nunca vacila. O próprio Andy Muschietti parece apaixonado pelas personagens e esse afeto faz-se sentir por toda a obra, conseguindo mesmo ofuscar alguns dos seus maiores problemas.

(publicado em 5 de setembro de 2019)

It: Capítulo 2, em análise
it capitulo 2

Movie title: It Chapter Two

Date published: 5 de September de 2019

Director(s): Andy Muschietti

Actor(s): Bill Skarsgård, James McAvoy, Jessica Chastain, Jay Ryan, Bill Hader, James Ransone, Isaiah Mustafa, Andy Bean, Jaeden Martell, Sophia Lillis, Jeremy Ray Taylor, Finn Wolfhard, Jack Dylan Grazer, Chosen Jacobs, Wyatt Oleff, Teach Grant, Nicholas Hamilton, Xavier Dolan, Taylor Fray, Javier Botet , Peter Bogdanovich

Genre: Terror, 2019, 169 min

  • Cláudio Alves - 68
  • Maggie Silva - 75
  • Rui Ribeiro - 70
  • Inês Serra - 68
  • Daniel Rodrigues - 63
  • João Fernandes - 50
  • Manuel São Bento - 50
63

CONCLUSÃO:

“It: Capítulo 2” é um épico de terror com poucos sustos. A sua duração é injustificável, não fosse a densidade temática do livro em que o filme se baseia. A herança literária traz tantas benesses como causa problemas, mas o filme, mesmo avaliado independentemente, tem fragilidades graves. A sua estrutura é especialmente má, mas o casting estupendo das personagens principais faz muito para ofuscar tais questões e dar valor ao projeto.

O MELHOR: O amor sentido pelas personagens e a prestação de Bill Hader como um comediante incapaz de aceitar as partes da sua identidade que as angústias da juventude o forçaram a reprimir.

O PIOR: A dependência por efeitos digitais e o facto de que este filme de terror tem muito poucos sustos.

CA

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One Response

  1. Frederico Daniel 1 de Outubro de 2019

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