Pennywise (Bill Skarsgård) | © NOS Audiovisuais

IT: Capítulo 2 | Do Livro à Tela

Uma das adaptações mais aguardadas do ano, “IT: Capítulo 2” chegou finalmente às salas de cinema, mas será que conseguiu fazer jus à obra de Stephen King?

“IT” é, muito provavelmente, um dos maiores desafios para qualquer cineasta. Transpor 1138 páginas para o grande ecrã nunca foi, nem nunca irá ser uma tarefa fácil. De modo que, à semelhança das adaptações anteriores, também a de Andy Muschietti tem as suas falhas.

Se leste o livro (ou os livros, dependendo da versão), então decerto saberás ao que nos referimos. Caso ainda não o tenhas feito, aperta o cinto, pois Muschietti deu (algum) cor-de-rosa àquela que muitos consideram como A obra de King.

Atenção contém SPOILERS do livro e do filme!

Derry, Maine. O palco do pesadelo criado por Stephen King, um dos maiores mestres do terror. “IT: Capítulo 2” é o fecho desse ciclo, pelo menos por agora. Tendo em conta a quantidade e densidade de material da segunda parte da obra, esta análise fará o exercício filme-livro e não o contrário, uma vez que Andy Muschietti e Gary Dauberman, responsável pelo argumento, fizeram uma adaptação algo livre de King.

Este livro teve início em Bangor, Maine, no dia 9 de setembro de 1981, e foi acabado de escrever em Bangor, Maine, em 28 de dezembro de 1985.” – Stephen King, “A Coisa – Livro II”

Quase quatro anos e meio foi o tempo que “IT,” considerado por muitos a melhor obra de King, demorou a ser escrito. Por isso, como referimos, convertê-la em cerca de 5 horas de filme nunca seria uma tarefa fácil. No entanto, há dois anos, Muschietti provou-nos que tal poderia ser possível e quase que nos convenceu até à estreia de “IT: Capítulo 2.” Atenção, não estamos com isto a dizer que a longa-metragem é um mau filme, apenas que em comparação com o livro, o primeiro capítulo foi melhor. Mais uma vez, o trunfo do cineasta argentino foi o elenco liderado por James McAvoy, Jessica Chastain, Bill Hader, Isaiah Mustafa, Jay Ryan, James Ransone e claro Bill Skarsgård. Respetivamente, Bill, o líder do Losers Club, Beverly, Mike, Ben, Eddie e Pennywise, ou, a Coisa.

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O elenco da versão adulta do Losers Club | © NOS Audiovisuais

Os membros do clube mantêm-se fiel ao livro, sendo que a diferença reside no protagonismo de cada personagem. Desde os pormenores mais simples, como o facto de Richie ainda usar óculos, apesar da sua versão original usar lentes há 20 anos, ou o facto de Mike nunca ter participado no confronto final com Pennywise. Também uma pequena curiosidade que ficou por contar: nenhum dos falhados pode ter filhos. Mas comecemos pelo início, onde conhecemos o adulto Bill e a sua mulher Audra (Jess Weixler).

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OS PEÕES DE PENNYWISE…

“IT: Capítulo 2” abre com a gravação da adaptação do livro de Bill, que entretanto cresceu para se tornar um autor famoso, incapaz de escrever um final decente para as suas obras. No cenário, conhecemos Audra, protagonista do filme e mulher de Bill. E pronto, esta personagem ficou-se por aqui. Contudo no livro, Audra tem um protagonismo bastante diferente. Insegura e preocupada, a mulher de Bill chega a partir para Derry, após Pennywise ter entrado na sua mente. O temível palhaço consegue na realidade deitar as garras a Audra e levá-la a flutuar, juntamente com as suas restantes vítimas, no seu covil. Quem também desempenha um papel neste desenrolar de acontecimentos é Tom, o marido de Bev, que no filme apenas vemos na cena inicial da apresentação da versão adulta desta.

Na verdade, ambos esposos têm um papel muito maior nas linhas de Stephen King do que no guião de Gary Dauberman. Após Bev fugir para Derry para se encontrar com os falhados, Tom espanca e mata a sua melhor amiga para descobrir o paradeiro da mulher. Pelo caminho, Pennywise dá-lhe um ‘trabalhinho’: capturar Audra e levá-la até ele. No entanto, Tom e Audra não são os únicos peões do palhaço. Tal como no filme, Henry Bowers é a arma de eleição da Coisa para tentar acabar com os falhados. Este acaba por ser tanto a vítima, como o assassino, já que no final do primeiro livro, Pennywise arranjou forma de o incriminar pelas mortes, o que resultou no seu internamento de 27 anos.

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Pennywise assumia a forma da lua para falar com Henry | © NOS Audiovisuais

De uma forma, podemos dizer que este o guardou para um uso mais tardio. Assim, quando o momento chegou, Pennywise assumiu a forma de Vic (aka Arroto Huggins), um dos amigos de Henry, e enviou Henry numa missão: matar os falhados – uma vez que o próprio não o podia fazer, visto que as versões adultas ainda não se lembravam a 100% dele (a falha de memória mantém-se fiel ao livro). Vic é descrito de forma cadavérica por King, pelo que estávamos algo expectantes para ver um morto-vivo de boné enquanto chauffer ao serviço da Coisa.

Um dos olhos desaparecera, por assim dizer, assim como parte da bochecha que dava lugar a um buraco apodrecido, através do qual se viam os dentes negros. Trazia o habitual boné dos New York Yankees virado ao contrário, o mesmo que usava no dia em que morreu.” – Stephen King, “A Coisa – Livro II”

No entanto, a espera valeu-nos um vislumbre de um Patrick Hockstetter não tão assustador ou sombrio quanto imaginámos.

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MIKE VS. A COISA

King desenhou o cadavérico Vic para guiar Henry na sua fatídica missão, aquela que o próprio não conseguia executar. Porque uma coisa que a versão cinematográfica não te explica, ou não deixa claro, é que Pennywise só te pode fazer mal se acreditares que ele existe. Ora, como as versões adultas do Losers Club não têm memória dos acontecimentos do verão de 58 – à excepção de Mike, por nunca ter deixado Derry, – a Coisa ainda não tem forças suficientes para um novo confronto daí que precise de um fantoche – Henry.

Bev (Jessica Chastain) e Mike (Isaiah Mustafa) | © NOS Audiovisuais

A primeira vítima de Henry é Mike, que, ao contrário do filme, passa grande parte do segundo livro na cama do hospital inconsciente. Recuando um pouco, Pennywise encaminha o seu fantoche – comodamente guiado pelo seu motorista-cadáver – para a biblioteca, onde os falhados tiveram reunidos. No entanto, aquando a sua chegada, só o Mike é que se encontrava no edifício. Os dois confrontam-se e a vida do falhado fica por um fio, tanto que Henry acredita que o matou. Contudo, também o próprio não saiu propriamente inteiro da luta, tendo regressado ao carro, onde Pennywise atenciosamente lhe deixara uma mensagem com a indicação dos números dos quartos de cada falhado.

Guiado pelo seu motorista cadavérico, Henry chega a Derry Town House. Aí, decide começar pelo andar mais alto e ir descendo à medida que terminava a sua missão. O primeiro sortudo foi Eddie, que se encontrava no quarto 609. Só que o seu plano saiu mais uma vez furado, desta resultando na sua morte. Sim, é o hipocondríaco que o mata, numa cena bastante sangrenta, e não Richie.

Henry urrou de dor e cambaleou para trás. O olho perfurado, de onde escapava um líquido amarelado gelatinoso, encontrava-se pendurado fora de órbita. A bochecha jorrava sangue a rodos, como uma fonte.” – Stephen King, “A Coisa – Livro II”

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O RITUAL DE CHÜD

Bom, esta parte na realidade merecia um artigo individual. O chamado Ritual de Chüd, inventado por King, assemelha-se mais a uma moca gigante, do que propriamente ao ritual de vamos dar as mãos e tentar acabar com o palhaço. Digamos que o mesmo foi apresentado aos falhados por uma personagem que muito dificilmente iria entrar na versão cinematográfica: a Tartaruga Maturin. Este peculiar elemento foi criado por King enquanto uma espécie de anti-Pennywise, ou seja, uma outra criatura ancestral que terá acidentalmente criado o nosso universo durante uma indigestão (o que na realidade explicaria muito, não era?). Já percebes porque nos referimos a uma grande viagem pelo espaço?

James McAvoy enquanto o Grande Bill, líder do Losers Club | © NOS Audiovisuais

Bom, a verdade é que no livro, é a Tartaruga que explica à versão pré-adolescente de Bill, quando este entra no vazio (ou no macroverso) proporcionado pelo Ritual, que o truque é canalizar a sua energia para coisas boas como a fada dos dentes ou o Pai Natal, à medida que repete o seu trava-línguas insistentemente

Ele castiga, exausto, o poste tosco e reto, e insiste, exausto que vê o espectro!”

Em 1958, o pequeno Grande Bill acreditou que o Ritual de Chüd poderia ter acabado com a Coisa de uma vez por todas. Porém, 27 anos depois, vimos que tal não aconteceu, embora Bill tenha tentado de novo o ritual, só que desta vez sem a Tartaruga, a qual se terá “engasgado com uma galáxia ou duas.” Nesta segunda investida, o líder do Losers Club parece não ter regresso possível das luzes da morte (as luzes que desencadearam as visões de Bev, por esta ter sido a única a flutuar), até que Richie que arranja forma de entrar no dito macroverso. Enquanto ambos estão presos nesta luta ‘mental,’ com os corpos estáticos e ausentes no ‘mundo real,’ Eddie consegue aperceber-se do que se está a passar: os amigos estão de alguma forma a abrir feridas na Coisa, que nesta fase assume a forma da aranha que vemos no filme.

Agora imagina arranjar uma explicação lógica para tudo isto no filme…


A MORTE DE EDDIE

Quer seja na versão original, quer na sua adaptação cinematográfica, Eddie Kaspbrak acaba morto. Este desfecho tem alguns pontos em comum, mas Stephen King deu um fim mais digno ao pobre hipocondríaco.

Em “IT: Capítulo 2,” é Beverly que dá um ferro a Eddie dizendo-lhe que “mata monstros… se acreditares,” sendo este que ele enfia na boca da aranha, salvando Richie das luzes da morte. No filme, a cena pode parecer um bocado fora de contexto, como acontece em muitos outros momentos da adaptação. Parece que, para determinadas partes do filme, Andy Muschietti e Gary Dauberman assumiram simplesmente que o público teria lido a obra. Ora para quem não leu, faltam algumas peças-chave: as luzes da morte é o que as vítimas de Pennywise experienciam quando flutuam; qualquer coisa é possível desde que acredites, principalmente no que toca a transformar um objecto numa potencial arma.

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A própria Bev tentando convencer-se de que nada é real… | © NOS Audiovisuais

Regressando à fatídica cena, depois de Eddie espetar a aranha gigante, esta crava-lhe uma das suas patas, provocando uma ferida que faz com que o pobre falhado se esvaía em sangue. A causa de morte foi fiel ao livro. Porém, neste, Eddie não atira um ferro, mas sim a sua bomba da asma, na qual acreditou e confiou a sua vida durante anos. “É um bom remédio, um forte remédio,” repete para se mentalizar de que o pequeno medicamento é mais do que o placebo que a sua mãe o obrigava a tomar. Quando atira o mesmo para a Coisa, esta trinca-lhe o braço causando uma hemorragia impossível de parar. No entanto, o seu objetivo foi alcançado: salvar Richie e Bill, proporcionando-lhes a oportunidade de matar Pennywise para sempre.

Em ambas versões, os falhados sobreviventes vêem-se obrigados a deixar o corpo do amigo para trás…

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A MATANÇA

Na minha opinião, este foi um dos piores momentos de “IT: Capítulo 2.” Demasiado cor-de-rosa tendo em conta o material base… Sim, é verdade que King escreveu 1138 páginas, das quais mais de metade assentavam na premissa de que basta acreditar para ser real. Por isso é que Pennywise assumia várias formas, consoante o medo de quem o via. Contudo, terminar a grande batalha com o Losers Club num círculo a enxovalhar o palhaço que, à medida dos insultos, vai diminuindo até se tornar uma massa, fica muito aquém do que realmente se passou a 31 de maio de 1985.

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Richie (Bill Hader) e Bill (James McAvoy) a caminho do covil da Coisa | © NOS Audiovisuais

Precisamente às 10h02 desse dia, os sobreviventes Bill, Richie, Beverly e Ben, assumem cada um uma função diferente. Bev recusando-se a deixar o cadáver de Eddie para trás fica no local, enquanto os rapazes perseguem a Coisa, que entretanto fugiu. Pelo caminho, encontram o seu ninho e Ben encarrega-se de esmagar toda a fileira de ovos que compõe o corredor do esgoto, numa cena um bocado pegajosa… Por conseguinte, restam Bill e Richie para o confronto final, onde é Bill que rompe as entranhas da aranha como se fosse um atacante de futebol americano,

Foi imediatamente banhado pelos fluídos quentes do ventre da aranha, que lhe cobriram o rosto, as orelhas e lhe subiram pelo nariz em laivos viscosos. […] Subitamente, sentiu que o agarrara: o coração da Coisa.[…] apertou as mãos com a energia que lhe restava. Ouviu-se um derradeiro guincho de dor e medo, e o coração explodiu-lhe entre as mãos.”- Stephen King, “A Coisa – Livro II”

Toda esta cena merecia ter sido adaptada em “IT: Capítulo 2”, afinal estamos ou não estamos num filme de terror Andy Muschietti e Gary Dauberman?

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A CENA FINAL

Ainda que possas pensar que a matança de Pennywise seria o ponto final de “A Coisa,” deixa-nos dizer-te que estás redondamente enganado. Tendo em conta que esta parte ficou de fora da adaptação, vamos fazer um breve resumo de como Derry ficou após o desaparecimento do seu demónio.

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O brilhante elenco infantil que deu vida ao Losers Club | © NOS Audiovisuais

Paralelamente aos avanços dos falhados face à Coisa, também a pequena cidade de Derry, Maine, abria feridas. Primeiro, veio um terramoto e depois o dilúvio, destruindo tudo e todos os que apanhava pelo caminho. Mais de 50% da cidade ficou submersa e não parecia exibir sinais de que o cenário fosse capaz de ser invertido

Depois de uma longa e demoníaca existência, é possível que Derry esteja a morrer… como uma flor noturna cuja época de floração já passou à história.” – Stephen King, “A Coisa – Livro II”

Só mais um pequeno apontamento, lembras-te da cena em que Bill compra a sua antiga bicicleta, a Silver, ao próprio Stephen King e a leva num passeio? No livro, essa cena é o derradeiro desfecho da aclamada obra. É o momento em que Bill recupera Audra, após esta ter ficado em estado catatónico causado por Pennywise. Recuando um pouco, o casal ficou em casa do Mike, em Derry, devido ao estado vegetal em que a mulher de Bill se encontrava.

Quanto aos restantes membros do Losers Club, Mike finalmente decidiu deixar Derry, Bev e Ben acabam juntos, mas numa viagem de carro até ao Nebrasca, e Richie regressou à Califórnia. Das memórias de todos, os acontecimentos que tiveram lugar em Derry, Maine, começam a ser uma mancha desfocada. Mesmo os números e apelidos apontados começam a desaparecer, como se nunca tivessem sido escritos.


NOTAS FINAIS

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Pennywise a seduzir uma das suas vítimas | © NOS Audiovisuais

Poderíamos acrescentar a este artigo muitos outros elementos, tais como a sexualidade de Richie, a qual nunca foi descrita por King, ou o labirinto de esgotos que dão acesso ao covil da Coisa, que mereciam uma melhor representação do que aquela que tiveram. Para não falar do pequeno Dean, que foi uma personagem inventada para a longa-metragem. Mas o que importa é que o próprio Stephen King aprovou todas as ideias de Andy Muschietti, Gary Dauberman e do próprio McAvoy, dando inclusive o ar da sua graça em “IT: Capítulo 2.”

Ainda assim, não deixamos de te aconselhar vivamente a que leias “A Coisa” na sua íntegra.

(publicado originalmente 29 de setembro de 2019)



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