LEFFEST ’21 | Red Rocket, em análise
No Festival de Cannes, “Red Rocket” foi um dos filmes prediletos da crítica internacional. A comédia dramática com uma veia cínica e moralidade ambivalente chegou agora a Portugal, com antestreia no Lisbon & Sintra Film Festival. A obra do realizador Sean Baker integra a competição oficial deste festival lusitano.
A melhor cena de “Red Rocket” encontra o seu protagonista na cama de uma namorada adolescente. Mikey é um ator porno na casa dos quarenta, um falhado profissional que está de regresso à sua terra natal no Texas depois de os esquemas em Hollywood terem dado para o torto. No início da fita, ele chega inesperadamente à casa da esposa e depressa penetra o domicílio com promessas de fortuna e auxílio. Ele é um oportunista descarado, um homem que só se interessa pelas outras pessoas na medida em que as pode explorar para proveito próprio. Isso é evidente no modo como ele encara a mulher e a sogra, mas é ainda mais óbvio nas suas interações com Strawberry.
Ela é a miúda na cama da qual Mikey repousa nessa estrondosa cena. Pálida e cheia de sardas, coroada por uma cabeleira ruiva vibrante, ela é um sonho de feminilidade americana que parece saída da fantasia sexual de um homem hétero de meia-idade. Quando se cruzam pela primeira vez, na loja de donuts em que Strawberry trabalha, Mikey é imediatamente cativado pela sua beleza. Não se trata de uma paixoneta pura, mas sim a manifestação da cobiça calculada. Ele quer possuir a rapariga e também quer torna-la numa comodidade económica, fazendo dela uma nova estrela porno à volta qual ele sonha criar o seu próprio estúdio.
Ambição não lhe falta. O que Mikey não tem é grande compaixão ou humanidade sequer. Quando consegue convencer Strawberry a passar um serão com ele e gravar um vídeo amador, a amante surpreende-o com um interlúdio musical. Em topless descarado, ela vai para o pequeno piano que tem no quarto de infância e faz serenata ao homem mais velho. A cena é um quadro com tanta lascívia quanto inocência, pintado em tons pastéis e ornamentada com a música doce da menina. Cantando uma cover melancólica dos NSYNC, a voz de Strawberry é uma revelação, um tesouro de sonoridade emocionante num cosmos miserável, um raio de luz na escuridão.
Contudo, não é na figura feminina ou sua cantoria que a câmara se foca. Ao invés, o olhar de Sean Baker incide em Mikey, nu e coberto pela modéstia de um lençol cor-de-rosa, ele observa a namorada com uma máscara de inexpressão gélida no rosto. Esperaríamos uma performance de afeto, mesmo que falseado, mas o ator porno não nos dá nada. À medida que o plano muda, enquadrando o protagonista com maior evidência, a sua falta de reação torna-se impossível de ignorar. Os olhos vítreos são quase répteis, enquanto expressam um rancor atroz. Mikey não sabe como monetizar o talento musical dela e isso deixa-o irado, vazio, quase invejoso.
Nem um pio de apoio sai da sua boca, nem um sorriso insincero ou um elogio cínico. Nada dele vem, somente a frieza do vazio e do silêncio. O cinema de Sean Baker caracteriza-se pela observação da pobreza na América e pelo interesse humanista nas pessoas que a sociedade mainstream marginaliza. Contudo, há limites para a compaixão cinemática e Mikey parece além dessas fronteiras do pensamento. Assim o cineasta troca a celebração pela ambivalência, pedindo ao espetador para aturar as loucuras de um protagonista asqueroso sem, no entanto, limar as suas arestas vivas. Se possível, Baker usa o engenho cinematográfico para as aguçar. Não que Baker demonize o trabalho sexual, entenda-se. O cineasta jamais comete tais crueldades.
Em certa medida, a caracterização de Mikey e o enredo que ele provoca trata-se da colisão entre um cineasta que sempre centralizou a compaixão com uma personagem que não entende sequer esse conceito. A alquimia deste trabalho é incerta e volátil, dependendo de uma flexibilidade tonal que oscila entre a risada e o esgar de desdém. A comédia de “Red Rocket” vive naquela conjetura onde o humor nasce do casamento entre tragédia e tempo, tanto em termos rítmicos como históricos. Entenda-se que, além do estudo de personagem, o filme se afigura enquanto estudo do momento, encenando a trama nos meses em 2016 que antecederam a eleição de Donald Trump.
Enquanto, no mundo quotidiano das personagens, uma celebridade menor se aproveita do charme manipulador para explorar todos aqueles que se põem pela frente, o mesmo acontece nos noticiários que brilham em televisores que nunca são desligados. Nesse sentido, “Red Rocket” é o filme mais abertamente político de Sean Baker, se bem que o cineasta não se atreve a seguir as mesmas conclusões niilísticas da nossa realidade. Trump pode ter saído vitorioso, mas Mikey jamais saboreia a ambrósia do triunfo. De facto, a sua história é uma odisseia de fracassos, desde o início ao fim. Que tal narrativa nos cativa é um testamento ao virtuosismo atrás da câmara e a astúcia daqueles à sua frente.
Para o papel de Mikey, Baker fez uma escolha de tamanho génio que quase nos tira a respiração. Antes de ganhar vaga fama em Hollywood, Simon Rex fez pornografia numa era em que o vídeo fazia a sua transição penosa para o exclusivo digital. Essas desventuras da juventude foram esquecidas quando os filmes “Scary Movie” o tornaram numa momentânea estrela da comédia paródica. Passadas umas décadas e Rex caiu no esquecimento, um espelho bonacheirão de Mikey. De facto, tantas são as feias ligações entre personagem e intérprete, que Simon Rex escondeu ao agente a sua vontade de participar no filme, rodando-o em segredo. Foi uma decisão inspirada.
Não só Rex aqui demonstra ser um grande ator, como desconstrói a sua mesma persona. A celebridade de segunda categoria eviscera-se a si mesmo, enquanto nos faz rir, pesquisando a monstruosidade de Mikey sem descurar o seu carisma oleoso. Só a cena do piano valia uma nomeação para o Óscar num mundo justo. O que impressiona ainda mais é quanto o restante elenco se equipara ao talento do ator principal. Como a esposa enfadada e a sogra rude, Bree Elrod e Brenda Deiss são revelações humorísticas, enquanto Suzanna Son negoceia as contradições de Strawberry com estonteante disciplina. Nunca sabemos bem quanto a miúda percebe das manipulações sexuais de Mikey. A incógnita faz dela um mistério ao mesmo tempo que eleva a personagem acima do objeto masturbatório.
A estes estupendos atores se junta todo um edifício cinematográfico capaz de retorcer o naturalismo preferido do realizador numa espécie de sobremesa com travos de arsénico. A fotografia de Drew Daniels faz com que todo o Texas pareça uma extensão daquela loja kitsch cheia de donuts coloridos. Contudo, o uso de 35mm também traz texturas grosseiras, uma materialidade fragmentada, quase bolorenta, que evidencia o degredo da cena. A música, cheia de canções nostálgicas, transcende o mau gosto, enquanto a montagem encontra os extremos emocionais de cada cena com grande economia. Se o filme fosse um pouco mais curto, diríamos mesmo que “Red Rocket” tem a estrutura perfeita. É claro que, para uma história como esta, a perfeição imaculada também seria errónea. O caos e um certo desleixe, feiura áspera, são ideais para o retrato de um homem como Mikey.
Red Rocket, em análise
Movie title: Red Rocket
Date published: 20 de November de 2021
Director(s): Sean Baker
Actor(s): Simon Rex, Suzanna Son, Bree Elrod, Drenda Deiss, Judy Hill, Ethan Darbone, Brittney Rodriguez, Sam EidsonVicky, Marlon Lambert, Davis Maxwell
Genre: Comédia, Drama, 2021, 128 min
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
Sean Baker perpetua a sua fama enquanto uma das vozes mais excitantes do cinema americano. Depois de “Starlet”, “Tangerine” e “The Florida Project”, “Red Rocket” é um retrato da América à beira do apocalipse que reflete o horror político na história de um monstro abusivo, pronto a explorar qualquer pessoa que encontre. Grandes atores e grandes imagens ajudam a esconder algumas das fragilidades estruturais desta tragicomédia miserabilista. O filme é um donut, cheio de cor e calorias doces, com um buraco no meio. Trata-se de um vazio charmoso, mas vazio mesmo assim. Trata-se de Mikey, uma criação sem igual na carreira do seu ator.
O MELHOR: A prestação de Simon Rex e a fotografia adocicada de Drew Daniels.
O PIOR: O filme é demasiado comprido e repetitivo. O ato final é delirante, mas demoramos tempo a mais a lá chegar. Além disso, a última cena, tal como aconteceu em “The Florida Project” atira-se de tal forma para a alucinação subjetiva que destoa do restante filme.
CA