Lovelace, em análise

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  • Título Original: Lovelace
  • Realizador: Rob Epstein, Jeffrey Friedman
  • Elenco: Amanda Seyfried, James Franco, Peter Sarsgaard
  • Género: Drama, Biography
  • USA | 2013 | 93 min

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Lovelace” não me prometia um sonho de filme. E, efectivamente, não me fez sonhar como um “Cinema Paraiso” (longe disso). Mas o que é o sonho? Fantasiar, acreditar no impossível, criar momentos mentais altamente improváveis? Ou, antes, acreditar na viabilidade de uma mudança de atitude, desatando os nós que nos aprisionam ao que não nos alimenta a alma e só nos puxa para baixo?

Linda Lovelace atingiu popularidade com a estrondosa e polémica película “Deep Throat”, realizada em 1972 por Gerard Damiano. Misto de comédia e de filme para adultos, foi, na época, gerador de um enorme lucro, considerando o baixo orçamento com que foi feito.

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Filha de pais católicos (uma irreconhecível Sharon Stone e um maduro e aparentemente tolerante Robert Patrick), Linda (Amanda Seyfried), numa rotineira saída nocturna, conhece Chuck Traynor (Peter Sarsgaard), possuidor de um egoísmo desmedido, que a feriria profundamente – fisicamente, a curto prazo; emocionalmente, para sempre.

Na verdade, o amor – que não é digno dessa designação e que Linda julgou ter encontrado – maltrata-a e obriga-a a protagonizar um elenco que não é, definitivamente, o que ambiciona para a sua felicidade: a indústria pornográfica em paralelo com uma vivência pessoal caracterizada pela submissão dentro de quatro paredes.

Inicialmente, Linda é ilusoriamente inserida no espectáculo, mas o que se lhe apresenta é a degradação do que é estar presa à vontade alheia. Chuck usa a sua posição de elemento masculino no casamento para exercer uma autoridade legitimada por todos. Permitida pela estrutura social. E esta é um das preciosidades de “Lovelace”, que não se limita a focar as opções de Linda, a escolha profissional que fez (ou não lhe foi permitido fazer), as suas relações familiares, a assumpção de ensinamentos de teor sexual com propósitos lucrativos, o próprio universo do crime.

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“Lovelace” é, acima de tudo e talvez contra algumas expectativas, uma pedra preciosa na divulgação de uma parte da mentalidade da época: a dos conflitos relacionais no casamento, o campo das cenas da vida conjugal. Essencialmente, a atitude de resignação (e um certo fundamentalismo) que imperava numa relação a dois, muitas vezes a roçar uma espécie de gratidão por parte do sexo feminino. E, ainda assim, o ‘script’ não se perde em potenciais exageros feministas que, não raras vezes, só denigrem o propósito que se pretende atingir.

Linda descobre, ainda a tempo, que o seu percurso de humilhação atingiu o limite. Após o sucesso de “Deep Throat” e cada vez mais asfixiada dentro de um mundo que a oprime, liderado por Chuck, opta por acabar com o seu massacre. Um ‘twist’ dentro do argumento que lhe foi imposto. E o seu trajecto é radicalmente alterado para melhor. Em 1980, Linda escreve um livro de memórias, intitulado “Ordeal”, através do qual revela os terrores por que passou.

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Das diversas metas atingidas por “Lovelace”, refiro, desde já uma, de aspecto formal, que me cativou em grande medida, pela sua originalidade e, simultaneamente, fluidez de intrusão no raciocínio do público cinéfilo: a forma de contar a história. R. Epstein e J. Friedman foram geniais na exposição do argumento. As cenas imbuídas de harmonia e carga relacional positiva não dão lugar às de brutalidade, abuso e misoginia. São, antes, as mesmas cenas, dessa forma divulgadas mais tarde. Estratégia criativa e intuitiva.

P. Sarsgaard intimida; A. Seyfried apela, na perfeição, à nossa solidariedade. S. Stone, brilhantemente, jamais abandona o seu papel de mulher rigorosa, agarrada às convenções. R. Patrick dá o rosto a um pai e marido menos transparente do que parecerá à primeira impressão. James Franco e Chloe Sevigny fazem, cada um, uma ‘cameo appearance’. E as outras personagens relevantes complementam um conjunto de personalidades que gravitam em redor de Linda, amarrada à obediência que lhe foi imposta, quer a nível educacional, quer desde o início do matrimónio e sob a máscara de uma intensa paixão que tudo pretende justificar.

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“Lovelace” é envolvente e uma boa peça de entretenimento. Mas não só. Bem estruturado, lembra – com base em factos reais -, que abandonar uma viagem para a qual se comprou bilhete não é, necessariamente, sinal de fraqueza ou ausência de coragem de levar algo até ao fim. É, antes, e se tal for dessa forma sentido, alcatroar uma estrada extremamente degradada ou, mesmo, mudar de rumo. É sinónimo de bravura. É antónimo de conformismo.

Para que os nossos dias venham a falecer numa outra estrada. Uma outra que, ao contrário da primeira, tenha tornado a viagem mais feliz.

 

 


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