O meu belo sol interior

O Meu Belo Sol Interior, em análise

“O Meu Belo Sol Interior” é um triunfo cinematográfico assinado por Claire Denis que conta ainda com a melhor prestação de Juliette Binoche desde que ela entrou em “Cópia Certificada” de Abbas Kiarostami.

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Isabelle é uma pintora francesa, divorciou-se recentemente e agora está à procura de amor. Quando a conhecemos, ela está a viver os últimos e muito sôfregos fôlegos de um caso com um banqueiro casado e asquerosamente arrogante. De seguida, um ator de teatro entristecido e cansado pela vida parece capturar o interesse de Isabelle, mas o seu estado de perpétua indecisão acaba por afugentar a pintora. Numa viagem invernal, ela conhece um homem que a seduz com uma dança ao som de “After All”. No entanto, ele é de classe trabalhadora e completamente distante da elite intelectual a que Isabelle pertence. Isso é um facto que se mostra impeditivo de uma relação duradora depois da intervenção de um amigo ciumento da pintora. Por entre estes encontros e desencontros, o ex-marido de Isabelle faz algumas aparições, dormindo com ela e criticando o seu estilo de vida. Por fim, desesperada, ela visita um vidente e, por entre leituras místicas de fotografias, ele próprio parece estar a insinuar-se como o próximo parceiro romântico da artista.

A sequência de eventos e relações acima descrita representa um sumário de tudo o que acontece ao longo de “O Meu Belo Sol Interior”, o novo filme de uma das mais singulares vozes do cinema francês contemporâneo, Claire Denis. Como muitos críticos têm vindo a comentar desde a sua estreia em Cannes, o filme parece ser uma tentativa de a cineasta francesa molhar os pés no género da comédia romântica, nomeadamente no tipo de explorações dos desejos e folias amorosas de mulheres de meia-idade que têm vindo a ficar associados a nomes como o de Nancy Myers. É evidente, contudo, que, tirando essa fácil comparação crítica, o filme de Denis tem pouco que ver com as rom coms de Hollywood, quer seja em estrutura ou tom.

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Afinal, há poucas coisas mais representativas da fórmula americana da comédia romântica do que a necessidade imperativa de uma resolução. Denis não está de todo interessada nisso. Para além do mais, o modelo de Hollywood exige um tom romântico e engraçado, sendo que o conforto do espetador é sempre posto em primeiro lugar. No caso de “O Meu Belo Sol Interior”, apesar de existirem ocasiões em que Denis e companhia conseguem despoletar valentes gargalhadas, conforto é algo que o filme resolutamente se recusa a oferecer ao espetador. Por muito benigno e jocoso que o final possa parecer, por exemplo, há sempre uma sombra de genuíno desespero e solidão a entrecortar as mais inofensivas passagens de diálogo. Não queremos com isto dizer que a comédia romântica de Hollywood não tem valor, longe disso, mas é certamente fascinante observar o modo como Denis se propõe a seguir um modelo semelhante, mas ao mesmo tempo o subjuga ao tipo de cinema subversivo e filosófico que a tornou famosa entre cinéfilos de todo o mundo.

A escrita de Roland Barthes sobre o discurso amoroso tem sido apontada como um ponto de partida para o modo como Denis explora a procura de amor da sua protagonista. Mesmo que isso não tenha efetivamente tido influência na criação do filme, a abordagem analítica com que Denis retrata e, em simultâneo, desconstrói interações amorosas e sexuais parece mais próximo da reflexão literária do que da experiência cinematográfica. Comparando “O Meu Belo Sol Interior” com outro grande filme de 2017 sobre o amor, “Chama-me Pelo teu Nome” de Luca Guadagnino, é impossível ignorar quão distantes as duas abordagens são. O realizador italiano submerge o espetador em emoção e na glória sensorial de um primeiro amor, enquanto Denis, confrontando-se com uma heroína e uma história bem diferentes dos jovens embriagados em paixão de Guadagnino, pede ao espetador que tenha uma perspetiva quase clínica sobre o seu trabalho.

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Isso pode levar muitos a classificarem este filme como frio ou alienante, mas Denis tem em jogo um grande trunfo e o seu nome é Juliette Binoche. A atriz interpreta Isabelle e, sem nunca sacrificar a autenticidade singular da sua personagem, consegue incorporar em si os muitos conceitos que Denis quer explorar nestas aventuras românticas. Ela é pessoa e ideia em simultâneo e a sua realizadora usa essa multiplicidade performativa para explorar questões abstratas de um modo extremamente concreto. A plasticidade expressiva de Binoche e o seu virtuosismo naturalista permitem-lhe interpretar reações complicadas sem nunca trespassar qualquer tipo de inorgânico esforço de ator. Um bom exemplo disto é um diálogo na casa-de-banho de um restaurante, onde Isabelle passa de gozona e risonha a um epíteto de desespero choroso num abrir e fechar de olhos.

Apesar disso, o maior feito de Binoche é talvez o modo como consegue transmitir a ideia que Isabelle está analiticamente ciente da sua própria trajetória romântica, seus percalços e permutações proto filosóficas. Ela é como que uma manifestação humana do olhar aguçado de Denis sobre os temas em cena e, por vezes, o comentário crítico da cineasta parece mesmo explodir de dentro da personagem com uma ferocidade que tanto surpreende como entretém. Num passeio pelo campo com um grupo de amigos afluentes que parecem estar a usar uma conversa sobre casas de férias como meio de se congratularem pela sua mesma riqueza, Isabelle vira-se para eles repentinamente e começa a gritar que está farta do seu discurso e que eles podem estar descansados, tudo é deles tudo lhes pertence, parabéns. Não é difícil imaginar Denis a revirar os olhos aos seus pares dentro da elite intelectual francesa e cuspir semelhantes invetivas.

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O grande triunfo de Denis não se restringe, contudo, somente à criação da personagem que é Isabelle. Na verdade, todo o filme é um pequeno milagre de virtuosismo subtil. As cenas de sexo, como é tradição no cinema francês, são invariavelmente anti eróticas, mas a cineasta usa isso a seu favor, encontrando algo cândido, íntimo e ocasionalmente doloroso na falta de perfeição sensual destes momentos. O próprio modo como Denis filma diálogos é algo magistral, mas nunca vistoso, como a sua coreografia de câmara oscilante quando Isabelle conversa com o seu amante banqueiro, ao mesmo tempo que este humilha um barman. Há décadas que Denis se afirma como uma das mais importantes vozes criativas do cinema francês, mas isso raramente foi mais óbvio do que neste contexto dissimuladamente simples.

Voltando um pouco atrás, ao modo como Denis subverte as expetativas de uma comédia romântica o mesmo tempo que emula o seu modelo, o final de “O Meu Belo Sol Interior” é o suprassumo coup de grâce da realizadora e argumentista. Ao longo do filme, vamos apercebendo-nos de quão limitada é a nossa visão de Isabelle, sendo que a sua procura amorosa é uma parte importante, mas temporalmente insignificante da sua existência. Ela vive com a filha, mas a criança quase não aparece. Sabemos da profissão de Isabelle, mas somente uma vez a vemos pintar. Por essa mesma lógica, as figuras masculinas que desfilam pelo filme são igualmente esboçadas, mais impressões de Isabelle do que pessoas. Com isso dito, ninguém tem uma presença mais imediata e pesada que Gérard Depardieu como o vidente cujas palavras para a protagonista encerram o filme.

Denis, verdade seja dita, nem espera que o diálogo termine antes de pôr os créditos a passar, como que atirando à cara do espetador os limites da sua observação. Tudo o que vimos foi somente um rasgo fugaz e efémero na vida de uma mulher. Na realidade não conhecemos Isabelle. Ou talvez a conheçamos., mas somente tão bem como ela se conhece a si própria. Mesmo em termos de construção cénica, Denis recusa-nos a conclusão fechada, e rouba-nos o conforto do ponto final. O seu filme encerra-se com reticências e, infelizmente, a felicidade idealizada que Isabelle procura parece estar para além desses três pontos tal como, possivelmente, a felicidade que o espetador, enquanto ser humano, também deseja.

 

O Meu Belo Sol Interior, em análise
O Meu Belo Sol Interior

Movie title: Un beau soleil intérieur

Date published: 23 de December de 2017

Director(s): Claire Denis

Actor(s): Juliette Ninoche, Xavier Beauvois, Philippe Katerine, Josiane Balasko, Sandrine Dumas, Nicolas Duvauchelle, Alex Descas, Laurent Grévill, Paul Blain, Valeria Bruni Tedeschi, Gérard Depardieu

Genre: Comédia, Drama, Romance, 2017, 94 min

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO

“O Meu Belo Sol Interior”, apesar de ter um título pavoroso, é uma das joias na coroa de rainha do cinema francês que deveria estar disposta sobre a cabeça da inigualável Claire Denis. Invocando o esqueleto da comédia romântica, a cineasta subverte e experimenta, apoiando-se numa prestação extraordinária de Juliette Binoche para nos oferecer uma das mais peculiares e preciosas reflexões sobre a experiência de uma mulher à procura do amor na história recente do cinema narrativo.

O MELHOR: Como sempre, no cinema de Claire Denis, não há nada mais belo que as cenas em que a música domina todo o filme e parece intoxicar as personagens. Neste caso, isso acontece quando, após o já mencionado e muito desastroso passeio campestre, Isabelle é silenciosamente seduzida por um estranho que dança com ela ao som de “At Last” cantada por Etta James. Num filme cheio de desesperantes cenas de sexo, não há nada mais sensualmente arrebatador do que esta comunhão musical de corpos na pista de dança.

O PIOR: O filme, por muito sublime que seja, é uma obra de difícil digestão. O seu objetivo é parcialmente o de desconcertar o espetador, fazendo de si uma experiência nem sempre agradável.

CA

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  1. Carmo Matos 7 de Janeiro de 2018

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