Emanuel Nevado em entrevista

MONSTRA 2018 | Entrevista ao animador Emanuel Nevado

A equipa da MHD teve o privilégio de entrevistar uma das mentes criativas do novo filme da Aardman “A Idade da Pedra”. Emanuel Nevado falou-nos da sua experiência numa das maiores produtoras de stop-motion do mundo. 

Qualquer animador de stop-motion sonha em um dia vir a trabalhar para a Aardman, mas acha-o inimaginável. A empresa, por muitos considerada imperatriz do stop-motion a nível mundial, tem provado que o seu trabalho é árduo e que os objectivos a cumprir na concretização de um novo projecto cinematográfico (ou televisivo) são sempre os mais desafiantes.

A Aardman já nos habituou a excepcionais projectos como a fantástica série “A Ovelha Choné” (em exibição desde 2007), ou os emblemáticos filmes “A Fuga das Galinhas” (2000) e “Wallace & Gromit: A Maldição do Coelhomem” (2005). Aliás, os seus projetos já renderam inúmeros galardões, entre eles, o Óscar de Melhor Filme de Animação precisamente por “Wallace & Gromit”.

Agora, chega a vez de “A Idade da Pedra” ou “Early Man”, no original, um dos filmes mais desejados deste 2018. Realizado por Nick Park, vencedor de 4 Óscares, “A Idade da Pedra” foi o filme escolhido para o arranque da 18ª edição da MONSTRA – Festival de Animação de Lisboa. A obra de animação decorre na pré-história e conta como é que os homens das cavernas aprenderam a jogar futebol.

Emanuel Nevado
“A Idade da Pedra”, o novo filme da Aardman

Foi então que nos sentamos com Emanuel Nevado para uma entrevista genuína e animada, no âmbito da antestreia do filme. Emanuel Nevado é um animador de 37 anos, também ele argumentista e realizador, que trabalha há oito anos na animação stop-motion. Há quatro anos saiu de Espanha para o Reino Unido para trabalhar na Aardman, cujos estúdios estão localizados na cidade de Bristol.

A conversa decorreu numa tarde chuvosa em Lisboa, no Cinema São Jorge, mas nem o mau tempo fez Emanuel Nevado perder o entusiasmo para falar connosco. Falou-nos de como é ser um animador, do empenho que a profissão exige, e de como é ser alguém que luta para que os seus sonhos se concretizem.

Emanuel Nevado não deixou de referir que olha a animação stop-motion como algo extremamente cativante, em que todos os dias surge algo de novo. Afinal é essa particularidade que sempre procurou profissionalmente.

MHD: Como é que surgiu a ideia de querer ser animador?

EN: Ui (risos). Para responder a essa pergunta é preciso explicar o meu background. Comecei como músico, mais precisamente como violinista durante muitos anos. Fiz o curso na Universidade Nova de Musicologia, e dei aulas durante muitos anos. Ao mesmo tempo, frequentei a Sociedade Nacional de Belas Artes, aqui em Lisboa, a estudar Pintura, Desenho, e depois Escultura. Entretanto, enquanto fazia as minhas primeiras esculturas, um amigo meu, o Ricardo Almeida, que estava a acabar o curso de cinema, desafiou-me a que fizemos, para o seu projecto final, uma animação.

MHD: E como é que correu?

Foi incrível, porque nenhum de nós tinha a mais pequena ideia de como é que se fazia um filme de animação. Fizemo-lo em nove meses, esse filme de animação gigantesco…com cerca de 12 minutos (sorrisos). Quando comecei a fazer aquilo apercebi-me que havia em stop-motion uma parte muito visual, uma parte muito musical e outra muito táctil. Para além de contar uma história, que era uma coisa que eu adorava, pois escrevia imenso.

Obviamente, como animador de stop-motion ao ouvires o nome da Aardman ficas logo com as orelhas em bico e perguntas-te: o que é que se passa?

MHD: Digamos que é uma mistura das artes?

EN: Exactamente. Depois apercebi-me que era isso que queria fazer. Na altura não fui capaz de o verbalizar, provavelmente porque me parecia uma coisa muito complicada de fazer. Na verdade, nos anos que se seguiram continuava a dar aulas de música, mas no meu tempo livre criava projectos bastante amadores de stop-motion. Por fim cheguei a um ponto em que pensei que o próximo passo seria viver apenas disto. É impossível viver de stop-motion em Portugal e portanto fui para Barcelona onde fiz um master na área.

Emanuel Nevado
Emanuel Nevado na produção de “A Idade da Pedra”

MHD: Foi arriscada essa mudança?

EN: Não foi muito arriscada porque a minha mulher foi promovida para ir trabalhar para lá, por isso tínhamos alguma segurança. Eu também tinha reunido algum dinheiro para poder tirar o curso. Correu muito bem e viver em Barcelona foi um dos melhores momentos da minha vida, pois foi quando comecei a trabalhar em stop-motion. Comecei por fazer anúncios publicitários, mas a certa altura já se começava a sentir a crise económica em Espanha, e haviam poucos projectos de stop-motion.

Quando eu estava a acabar o curso, deveria ter ido para uma empresa em Valência, mas surgiu outra possibilidade. Falo de um curso, que eu não conhecia porque só tinha sido feito uma vez, e era feito pela Aardman. Obviamente, como animador de stop-motion ao ouvires o nome da Aardman ficas logo com as orelhas em bico e perguntas-te: o que é que se passa?

Pelos vistos estavam a fazer um curso de três meses intensivos na NFTS, uma das melhores escolas de cinema do mundo. Foi desta escola que saiu o Nick Park! Esse curso deu a volta à minha carreira. Acabei o curso numa sexta-feira e na segunda-feira seguinte comecei logo a trabalhar, na quinta temporada de “A Ovelha Choné”, onde estive seis meses. Passei outros seis meses trabalhar para um projecto da Disney-Europa, em Manchester, e entretanto fui contratado para fazer “A Idade da Pedra”.

MHD: Algum filme que assistiu em criança influenciou este sonho / objectivo em ser animador?

EN: É possível. Uma das coisas que eu me lembro de gostar mais em miúdo era a série “Postman Pat” / “O Carteiro Paulo”. Só mais tarde é que me apercebi: espera aí, aquilo era stop-motion?! Curiosamente, em Manchester trabalhei na empresa que ainda hoje faz essa série. Houve ainda dois filmes que tiveram muito impacto nas minhas primeiras experiências, “A Fuga das Galinhas” e “Wallace & Gromit”. Além desses, o “The Periwig-Maker” e o “Next”, do Barry Purves, filmes com uma densidade poética, que me fizeram ver que poderia finalmente dedicar-me ao stop-motion. Outros filmes da Europa de Leste, do Jiri Trnka e do Vladislav Starevich, são também filmes que gosto imenso.

MHD: Como descreveria um dia típico de trabalho na Aardman? E já agora como foi trabalhar para “A Idade da Pedra”?

(Suspiros). Vamos assumir que há um dia típico de trabalho na Aardman, o que é muito difícil.

MHD: São dias, anos até, de muito trabalho, não é assim?

EN: É. Cada dia é bastante diferente, há muita logística à volta de um trabalho deste género. Portanto pode haver um dia em que simplesmente há qualquer coisa que correu mal, no sentido em que alguma coisa atrasou nalgum departamento, que não tem nada a ver com o teu, e portanto passas um dia inteiro à espera. O maior pesadelo de um estúdio de animação é ter animadores parados. Mas todos os estúdios de animação passam por isso.

Quanto ao dia típico vou chamar a um dia que corre bem. Neste filme trabalhámos essencialmente 52 a 55 horas semanais. Chegámos muito cedo aos estúdios, às oito da manhã, e os animadores são aqueles que vão directamente para o seu espaço, e não vêem mais nada a partir daí. Entram no set e a certa altura chegam o diretor de animação e o realizador e fazem-te um briefing. Ou seja, esclarecem-nos que o plano que vais fazer vem na sequência de outro plano, que a personagem tem um determinado arco de história… Enfim, dão-nos informações muito importantes não só ao nível da performance, mas também ao nível técnico.

“A IDADE DA PEDRA” É UM DOS FILMES MAIS AGUARDADOS DO ANO

Emanuel Nevado
Emanuel Nevado com os bonecos utilizados na produção de “A Idade da Pedra”

Depois, o realizador e algum animador preparam-se para fazer aquilo a que se chama de LAV (Live-Action Video). Estas pessoas vão para um pequeno estúdio, com uma câmara que as filma, e representam uma determinada acção. Não irão depois imitar o que ali está, mas aquilo serve de referência para pequenos detalhes, para o acerto do timing de cada fotograma. Nesse vídeo, e à medida que falas, captam-se outros movimentos inconscientes do teu corpo, como por exemplo, o teu braço faz um pequeno ligeiro movimento para o lado.

Aí percebes que se incorporares isso na tua personagem terás muito mais realismo, criando mais emoção e mais empatia para com o espectador. Afinal o espectador, em última análise, tem de esquecer que aquilo é um boneco e tem de pensar que aquilo é um ser vivo. O espectador não pode ver um boneco, porque a partir do momento em que vê o boneco a ilusão terminou.

MHD: Supomos que seja um processo intenso…

EN: Sim, depois ainda fazes o block. Um block é uma espécie de ensaio das poses essenciais da personagem, feito sobretudo em longas-metragens. Permite aos directores de animação experientes retirarem informações suficientes sobre os planos. Por exemplo, se um plano está ótimo, ou se o plano não funciona. Uma vez que o block é aceite, com os seus respetivos ajustes, não há volta atrás. São decisões permanentes, numa adrenalina de trabalho, e que os animadores adoram.

MHD: Já que falou em realismo, considera que o cinema de animação está a tornar-se cada vez mais realista? 

EN: Sim, mas faz mal. Não é isso que devia fazer. É verdade que o cinema de animação é cada vez mais realista, e é verdade que a Walt Disney com “A Branca de Neve” fez rotoscopia para seguir esse caminho. Quando tivermos melhores computadores será possível fazermos renders absolutamente hiper-realistas, e se aproveitarmos isso para fazer animação, chegaremos ao momento em que já não estamos a fazer rigorosamente nada. Talvez estejamos a fazer algo parecido a um filme live-action, mas muito mais caro do que um filme live-action. A animação nunca deverá ser isso.

Emanuel Nevado
A personagem Goona de “A Idade da Pedra”

MHD: A animação deve marcar a diferença em relação a outros géneros.

EN: Tem de marcar a diferença, mas tem de sobretudo de seguir as regras do mundo onde estão inseridas as personagens. Tem de ser credível. As pessoas têm de acreditar, e têm de sentir, que no seu mundo a personagem saltou e depois caiu. Obviamente a forma de fazer animação é sempre mais exagerada àquilo que fazemos na realidade, e isso não se pode perder. Desde o momento que se o perca, a animação tornar-se-á muito desinteressante. Existem filmes que fizeram isso como “Polar Express”, que também utilizou a rotoscopia, mas que não correu bem. A animação não funciona exatamente como cópia da realidade.

MHD: Gostaria que o cinema de animação tivesse futuro em Portugal?

EN: Gostaria, mas não acredito que tenha. Falta-nos muita coisa e não me parece que seja uma prioridade. Mas seria ótimo. Já foram feitos filmes de animação em Portugal muitíssimo bons. Foram poucos, mas eu espero que isso mude à medida que formos fazendo mais filmes, e que as pessoas encarregues de investir se apercebam que esta é realmente uma arte diferente de todas as outras. Se o dinheiro for bem utilizado, as coisas podem mudar.

MHD: Existe algum conselho que gostaria de dar a algum estudante de animação ou profissional que pretenda enveredar pela indústria cinematográfica de animação, e do stop-motion

EN: Há duas coisas para se ser animador. Há uma parte que tem a ver com a personalidade da pessoa. Se é uma pessoa que observa muito aquilo que se está a passar, ou não é. A pessoa terá que observar, por si mesma, todos os detalhes à volta, sem que ninguém insista para que o faça. Ou é uma pessoa com uma resistência incrível à frustração, ou não é. Se é daquelas pessoas que quando uma coisa corre bem, desiste, nunca vai fazer stop-motion. Também não pode ser uma daquelas pessoas que precisa constantemente de falar com outros, que seja bastante social no local de trabalho. O animador passa entre oito a dez horas por dia sozinho fechado numa cave (risos).

A segunda parte, essa sim relativa a conselhos, e apesar de não gostar de os dar, faço-o aqui porque estou muito seguros deles. É importante aprender as bases. Há exercícios fundamentais como pegar numa caixa de fósforos e tentar fazer com que essa caixa pareça um objecto que está nervoso, ou que está preguiçoso, etc.. Outro exercício mítico, que os alunos de stop-motion detestam, é o bouncing ball, que consiste em fazer uma bola cair. Esse exercício é extraordinariamente útil.

Quando eu fui para a Aardman, passámos a primeira semana só a fazer isso. Como animadores que já tínhamos trabalhado profissionalmente na área não queríamos acreditar que íamos perder uma semana a fazer um exercício tão básico. Hoje em dia há escolas que já nem ensinam isso por ser demasiado básico. A verdade é que quando começas a trabalhar, compreendes o quão importante esses exercícios são para fazer stop-motion. Por isso, e por muito que custe, é preciso agarrar as bases, mesmo sabendo animar muito bem.

Emanuel Nevado
Porcão, uma das personagens de “A Idade da Pedra”

Outro conselho é o de nunca sobrevalorizar os teus olhos. Os olhos enganam-nos diariamente, a qualquer minuto. No que diz respeito às artes os nossos olhos simplificam as coisas. Numa área como stop-motion, em que estás dias a fazer 2 ou 3 segundos do filme, podes pensar: isto está ótimo, mas piscas os olhos, e pensas que está péssimo, e assim sucessivamente.

Portanto é necessário pedir ajuda a outras pessoas. Pessoas que por um lado sejam leigas em stop-motion, que na verdade serão essas pessoas a ver o filme. Se essas pessoas vêm um sentimento que não tem nada a ver com aquilo que querias transmitir, então percebes que animação falhou. Podes pedir ainda opinião a grandes profissionais, e esperas que essas pessoas te respondam. Aí podes conseguir dar o salto, seguir em frente, e ver coisas que não tinhas visto antes.

MHD: É sempre bom ouvir a opinião das outras pessoas…

É essencial ouvirmos as pessoas quando fazes desenho, ou qualquer outra arte. Em stop-motion trabalhas demasiado tempo e chega a um momento em que o teu cérebro distorce tudo e é muito difícil decidir por ti só o que está bom.

“A Idade da Pedra” estreia esta quinta-feira nas salas de cinema. O realizador Nick Park estará este sábado no Cinema São Jorge para uma masterclass. A MONSTRA anda à solta em Lisboa até ao próximo dia 18 de março. Para mais informações podes consultar a página oficial do festival aqui

One thought on “MONSTRA 2018 | Entrevista ao animador Emanuel Nevado

  • muito bom

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