© MOTELX

MOTELX’ 22 | Speak No Evil, em análise

Depois de uma estreia estrondosa no Festival de Sundance, “Speak No Evil” chega a Portugal graças ao MOTELX, onde integra a competição Méliès d’Argent para Melhor Longa-Metragem Europeia. Christian Tafdrup é um ator tornado realizador que aqui assina uma tenebrosa sátira dinamarquesa com permutações sanguinárias. O filme conta com Morten Burian, Sidsel Siem Koch, Fedja van Huêt e Karina Smulders como os dois casais no centro da intriga.

O terror e o fantástico são um espelho distorcido mais do que uma reflexão direta da realidade, sempre assim foi e sempre assim será. Através de uma confrontação com aquilo que nos choca o sistema, somos capazes de melhor reconhecer as ansiedades basilares das quais tais horrores germinam. De um ponto de vista mais analítico, a arte feita com o intuito de assustar revela muito sobre a sociedade que a produz e a ela responde com adequado temor. Compreender o que nos atormenta o sonho é um modo de entender o que nos define o quotidiano – através da ficção se sabem verdades e a narrativa fala verdade a mentir.

speak no evil critica motelx
© MOTELX

Tudo isto para explicar as razões por detrás de alguns pontos críticos em “Speak No Evil,” um dos filmes de terror mais falados do ano desde que primeiro passou em Sundance. É certo que alguns comportamentos nos fazem torcer o nariz e revirar os olhos, pensar num instinto de sobrevivência que aqui está ausente e numa racionalidade ainda mais distante. Só que, o realismo nunca é objetivo da fita e julgar a partir de um pressuposto contrário é erróneo, uma falácia cinéfila. Há algo de absurdo nesta história, sem dúvida, mas o risível serve para iluminar facetas tenebrosas subjacentes ao nosso dia-a-dia, realidades que o realismo iria abafar.

Afinal de contas, “Speak No Evil” é um conto da boa educação levada aos limites da loucura, com consequências atrozes para quem posiciona um sentido de propriedade social acima do instinto animal. Ao mesmo tempo, o filme parece reconhecer como a mentira branca e o comportamento amistoso, o ato de engolir sapos, é parte fulcral para a paz. Se todos nos deixássemos levar pelo desejo bruto, pelo individualismo sem estribeiras, viveríamos como monstros egoístas. Se o argumento de Christian e Mads Tafdrup nunca articula estas ideias opostas em sintonia, a dissonância que inspiram certamente dá que pensar.

Mas, considerações temáticas aparte, de que trata “Speak No Evil?” Estilizada em termos que lembram Lanthimos e Haneke, a fita contrapõe situações corriqueiras com o portento de violência. Isso regista-se logo na abertura sem diálogo, quando uma viagem de carro pela paisagem noturna de Itália ganha sensação de pesadelo através da música. O que, de facto, observamos é a chegada de um casal holandês à estância italiana onde decidiram passar férias na companhia do filho pequeno. Só mais tarde, os conheceremos, contudo, visto que os verdadeiros protagonistas deste terrorífico conto são outra unidade familiar de férias no mesmo local.

Lê Também:   Sundance 2022 | Resurrection, em análise

Bjørn e Louise são os nossos heróis trágicos, um casal dinamarquês que parecem é estar a precisar de férias um do outro. Sua infelicidade matrimonial não é nada de especial, uma tristeza banal que jamais se expressa abertamente. A sua estadia veraneante faz-se na companhia de Agnes, filha pequena que tanto provoca afeto como irritação, especialmente quando faz birras em torno do coelho de peluche que está sempre a perder. No seu desconforto com um sorriso pintado, o clã da Dinamarca cruza-se com Patrick, Karin e o jovem Abel, aquela família holandesa que chegou à estância já pela calada da noite.

Em cortes seguros e judiciosos, Tafdrup mostra-nos um resumo fugaz das férias em Itália, da conexão que se forma entre estranhos que se conhecem em terras para si estranhas. Patrick e Karin parecem ser aquele casal feliz que Bjørn e Louise fingem que são, apaixonados e belos, portadores de um magnetismo enganador. De volta a casa, os dinamarqueses descobrem um postal que os convida a passar um fim-de-semana na casa dos novos amigos. Inicialmente relutante, Louise lá concorda com Bjørn cuja fixação em Patrick parece quase homoerótica – será que ele quer ser como o outro homem ou quer possuí-lo?

Longe do idílio italiano, a relação entre o quarteto e seus filhos depressa se deteriora, micro agressões disparadas pelos holandeses com a casualidade segura de quem gosta de manifestar o seu poder através de tais provocações. Bjørn e Louise tudo toleram com um sorriso educado, desde a insistência em que a mulher vegetariana coma carne até a comportamentos mais incómodos que violam as intimidades de cada um. Depois de uma noite mal dormida, os dois saem sem dizer adeus, mas algo os faz voltar. Esse gesto divide “Speak No Evil” em duas metades tonalmente distintas, uma comédia de costumes transfigurando-se numa tragédia violenta.

speak no evil critica motelx
© MOTELX

O género do terror e seus paradigmas possibilitam a metamorfose, mesmo quando não escondem quão extremadas algumas das decisões em cena são. A certa altura, dá vontade de gritar para que Bjørn e Louise deixem de ser patetas e fujam e que se lixe a boa educação. Felizmente, a vertente satírica da fita serve de sustentação para estas reviravoltas e os atores nunca vacilam. Morten Burian e Sidsel Siem Koch são estrondosos como as vítimas do suplício, negociando as muitas indignidades do argumento até um momento final de piedosa união. Por seu lado, Fedja van Huêt é uma assombração de carisma musculado como Patrick e Karina Smulders faz de Karin uma presença insidiosa com jeito doce a disfarçar o veneno. O elenco representa a cola que une todas partes de um filme que se julga mais chocante do que realmente é – sem eles “Speak No Evil” não mereceria a aclamação conquistada.

Speak No Evil, em análise

Movie title: Speak No Evil

Date published: 7 de September de 2022

Director(s): Christian Tafdrup

Actor(s): Morten Burian , Sidsel Siem Koch, Fedja van Huêt, Karina Smulders, Liva Forsberg, Marius Damslev, Hichem Yacoubi

Genre: Terror, Thriller, 2022, 97 min

  • Cláudio Alves - 70
  • Maggie Silva - 84
77

CONCLUSÃO:

Quatro fabulosos atores dão vida a uma sátira social onde as boas maneiras dão aso ao abuso, à violência e crueldade inusitada. Explodindo tensões da sociedade moderna num pesadelo horripilante, Christian Tafdrup concretiza uma daquelas obras que seguem o espetador para fora da sala de cinema. “Speak No Evil” assombra e atormenta, uma força malévola que contamina a mente, o espírito, que faz da interação banal um jogo de roleta russa com cinco balas num tambor de seis.

O MELHOR: A justificação para toda a maldade, uma fala que resume o filme sem tirar nem por. “Porque fazes isto? – Porque me deixaste.”

O PIOR: Há um desequilíbrio entre a falta de contexto e a enfática explicação do horror em cena. Quiçá mais meia hora para desenvolver as personagens ajudasse o filme.

CA

Sending
User Review
4 (5 votes)
Comments Rating 5 (1 review)

Leave a Reply

Sending