“No Ritmo do Coração,” segunda longa-metragem da realizadora Siân Heder, é um remake da comédia francesa “A Família Bélier.” Estreado no Festival de Sundance, esta obra tem vindo a conquistar audiências desde então, sendo comprado pela Apple num negócio milionário. Agora, o filme, que também dá pelo título de “CODA,” está nomeado para três Óscares – Melhor Filme, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Ator Secundário para Troy Kotsur.
Tal como seu antecessor gálico, “No Ritmo do Coração” conta a história de uma adolescente que é a única pessoa ouvinte na sua família imediata. Apesar de ter talento musical, a rapariga suprime seus sonhos em virtude do seu papel no funcionamento do negócio familiar. Sem os seus esforços enquanto intérprete, os pais e o irmão teriam muito maior dificuldade no seu dia-a-dia, uma espiral de co-dependência que chega a um momento de crise aquando daquele ponto em que uma criança se torna adulta. Com o secundário a acabar e o futuro incerto no horizonte, escolhas têm que ser feitas.
Agricultura tornou-se em pesca, na transferência internacional da história, mas a narrativa é praticamente a mesma. Na zona costeira de Massachusetts, a câmara de Siân Heder descobre a vida dos Rossi, focando-se na jovem Ruby. Há uma natureza pachorrenta no modo como vamos entrando no universo das personagens, entendendo o seu quotidiano através de arquétipos cómicos e humor situacional. Uma ida ao hospital por causa de infeção venérea, por exemplo, mostra-nos como os deveres de Ruby enquanto intérprete transcendem o conforto da rapariga. A cena faz-nos rir, é certo, mas depreende que nos identificamos com a adolescente humilhada.
Não negamos que “No Ritmo do Coração” é um filme repleto de intenções nobres e ideais que merecem aplauso. Na pré-produção, a atriz Marlee Matlin defendeu que atores surdos deviam ser escolhidos para todos os papeis de não-ouvintes, trazendo a esta fita americana uma autenticidade que o seu predecessor não tinha. É difícil argumentar contra o facto que o sucesso do filme marca um desenvolvimento positivo na representação de experiências marginalizadas no grande ecrã. Contudo, não é essa façanha de casting que apagará todos os problemas do guião. Por muito que “No Ritmo do Coração” se promova enquanto história inspiradora para a comunidade surda no cinema, a realidade da coisa é mais complicada.
Acontece que, na prática, o filme apoia sua comédia em clichés e estereótipos. De forma geral, os Rossi são representados como pessoas altivas e orgulhosas, capazes de questionar as estruturas de poder que lhes dificultam a vida. Essa independência é, no entanto, contradita pela relação dos outros membros da família e Ruby. Somos levados a crer que, sem ela, o negócio da pesca iria por água abaixo e que a subsistência, a sobrevivência, deste núcleo doméstico é responsabilidade da heroína adolescente. Estas duas facetas da caracterização nunca coerem e levantam muitas perguntas jamais respondidas.
Afinal, como é que Jackie e Frank Rossi viviam antes do nascimento da sua filha mais nova? Em nenhum lugar existe o auxílio de intérpretes profissionais, apesar de a sua presença ser legalmente obrigatória em muitos dos cenários expostos nesta narrativa americana. Cenas passadas no hospital e no tribunal são particularmente flagrantes, torcendo a realidade de modo a pintar as pessoas surdas como incapazes e a prodigiosa Ruby como uma mártir. No trabalho dos atores, sentimos o esforço para humanizar as personagens, mas o guião sistematicamente sacrifica dignidade em nome do humor fácil.
O pior é que não há elemento estético algum a suportar ou justificar esse texto pejado de lugares comuns. Como muitos mais medíocres campeões de Sundance, “No Ritmo do Coração” apela a uma apologia da história acima de qualquer preocupação formalista. Ainda para mais, o único momento em que existe alguma invenção cinematográfica, ela manifesta-se em design de som. Por outras palavras, o mais importante elemento estilístico da obra existe num paradigma inacessível àquelas pessoas que o filme se propõe a representar, a celebrar. Por muito que a promoção nos queira convencer, este não é um marco assim tão grande de progressismo.
Então estamos perante uma nulidade estética cuja história, apesar de apelos sentimentais, é uma lamechice sem sustento que trai os seus próprios ideais. Certamente haverá algum fator que merece aplauso, alguma justificação para a aclamação que o filme tem recebido desde a estreia. Os atores são esse elemento, a salvação de “No Ritmo do Coração.” Nomeadamente, batemos palmas em honra dos três atores surdos que aqui desempenham um milagre, elevando o texto anémico e dando-lhe a aparência de complexidade. Matlin, vencedora do Óscar por “Filhos de Um Deus Menor,” é a que menos impressiona, mas isso deve-se mais ao argumento que seu trabalho enquanto atriz.
Daniel Durant, por seu lado, pega no papel do irmão mais velho de Ruby, Leo, e injeta-lhe toda uma narrativa biográfica que fica por contar. Sentimos toda uma teia de ressentimentos e afetos no modo como este elo fraterno é delineado pelo ator. Melhor ainda é a sua capacidade enquanto herói romântico num fio narrativo secundário, entre Leo e a melhor amiga da protagonista. Com isso dito, a estrela do filme não é Emilia Jones no papel principal, mas sim Troy Kotsur, como o patriarca Rossi. Desde farsa até tragédia, ele dá uma enorme profundidade a esta fita superficial e, em seus olhos, vemos uma galáxia de sentimentos contraditórios. Ele sim, faz-nos chorar e merece prémios de Hollywood. Oxalá todo o filme estivesse ao seu nível.
Depois da sua estrondosa estreia em Sundance, “No Ritmo do Coração” foi ganhando uma reputação indefensível, muito além de qualquer mérito real. Marlee Matlin, Troy Kotsur e Daniel Durant fazem o que podem, mas os seus desempenhos não são o suficiente para tornar o filme num trabalho legitimamente bom. Para quem goste de risos fáceis e sentimentalismo descomplicado, supomos que haverá aqui valor. Enfim, o potencial de grandeza não é cumprido.
O MELHOR: Troy Kotsur é uma estrela!
O PIOR: O recorrer a clichés cómicos, a falta de primor audiovisual, a má representação da comunidade surda nos EUA.
Licenciado em Teatro, ramo Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Ocasional figurinista, apaixonado por escrita e desenho. Um cinéfilo devoto que participou no Young Critics Workshop do Festival de Cinema de Gante em 2016. Já teve textos publicados também no blogue da FILMIN e na publicação belga Photogénie.