O filme conta um dia na vida de Una (Elín Hall).©NitratoFilmes/Divulgação

No Romper da Luz — Análise

No “Romper da Luz” (When the Light Breaks), do islandês Rúnar Rúnarsson, é um deles. Estreou em Cannes, na secção Un Certain Regard, e chega agora às salas portuguesas, raro privilégio para um cinema islandês que quase nunca nos visita.

É muito bonito o título e é muito bonito este filme. “No Romper da Luz” (When the Light Breaks), do islandês Rúnar Rúnarsson, abriu a secção Un Certain Regard no Festival de Cannes 2024 e estreia agora às salas portuguesas quase como inevitável. É um filme discreto, feito de silêncios, de rostos à deriva e de uma dor tão íntima que quase parece indizível. O cinema islandês raramente chega ao grande público em Portugal, mas vem sempre com esta estranha mistura de frieza e calor, de gelo e ternura. E este filme é um caso exemplar.

No Romper da Luz
No Romper da Luz não nos afunda, levanta-nos. ©Nitrato Filmes/Divulgação

Uma tragédia juvenil

O filme conta um dia na vida de Una (Elín Hall), uma jovem estudante de artes que descobre o que é o luto na sua forma mais crua. O namorado — ou melhor, o amante secreto — morre de repente no maior acidente rodoviário da Islândia. Doze mortos, um país em choque, e Una perdida entre dois mundos: o do luto oficial, que pertence à “verdadeira” namorada de Diddi, e o do luto clandestino, que lhe cabe a ela viver em silêncio. Como chorar alguém que não podíamos assumir em vida? Como reclamar dor sem o estatuto que a sociedade reconhece?

As respostas são do espectador

Rúnarsson não dá respostas. Prefere seguir Una com a sua câmara paciente, da cama onde o vemos pela última vez, ao hospital, ao bar, ao memorial improvisado, à noite que parece não ter fim. O filme não tem pressa, não precisa de grandes enredos nem reviravoltas. A história é a ausência, o vazio, a sensação de estar deslocado no próprio mundo. Elín Hall, estreante, dá ao papel uma intensidade contida, um olhar seco e duro que nunca cai no melodrama. Vê-se no rosto dela a confusão de quem não sabe se deve gritar ou calar.

No Romper da Luz
“No Romper da Luz” é uma pequena pérola do cinema islandês. ©Nitrato Filmes/Divulgação

Duas mulheres e o destino

E o mais interessante é que não se trata de um triângulo amoroso banal. Não há escândalo, não há cena de ciúmes, não há vilãs nem santas. Há duas mulheres ligadas pelo mesmo homem, Klara (Katla Njálsdóttir) e Una, que se encontram no epicentro do luto. O filme ganha força justamente nesses encontros: Klara abraça Una, talvez sem saber, talvez desconfiando. Há tensão, há cumplicidade, há raiva e há ternura. É como se o silêncio das duas dissesse mais do que qualquer discussão.

No Romper da Luz
Rúnarsson filma como quem escuta. ©Nitrato Filmes/Divulgação

O verão islandês

O cinema islandês tem esta qualidade estranha: consegue transformar o quotidiano em algo quase mítico. A luz interminável do verão, os bares cheios de amigos a beber shots, as ruas frias de Reykjavik e tudo parece carregado de uma beleza que nasce precisamente da dor. Não é um filme triste, é um filme sobre a tristeza. E essa diferença é tudo: porque “No Romper da Luz” não nos afunda, levanta-nos. Mostra que estar vivo, mesmo em estado de perda, é uma bênção disfarçada.

O verão na Islândia
A belas imagens do verão islandês.©Nitrato Filmes/Divulgação

Uma luz de esperança

É claro que haverá quem ache o filme lento, quase sem enredo. Mas é precisamente nessa recusa de enfeites que está a sua força. Rúnarsson filma como quem escuta: pacientemente, sem interromper. O que importa não é a tragédia em si, mas a forma como ela ecoa nos corpos, nas expressões, nos silêncios. O cinema aqui não grita, murmura. E nesse murmúrio cabe mais verdade do que em muitas epopeias sobre a morte. O que fica no fim é a sensação paradoxal de otimismo. Porque o filme mostra-nos a perda, mas também nos lembra como é bom estar vivo, mesmo quando custa respirar. Há uma beleza inesperada no gesto de sobreviver ao impensável. Há luz que rompe mesmo quando o dia parece não ter fim.

No Romper da Luz — Análise
  • José Vieira Mendes - 75

Conclusão:

“No Romper da Luz” é uma pequena pérola do cinema europeu: simples, delicado e ao mesmo tempo brutal. Rúnar Rúnarsson filma o luto como quem filma a vida: sem filtros, sem respostas fáceis, sem piedade. Mas há algo de libertador nessa frieza. Porque, no fim, o que nos mostra é que viver é sobreviver e que sobreviver, mesmo com dor, é também uma forma de beleza.

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Pros

O MELHOR: a contenção da interpretação de Elín Hall e a relação silenciosa entre as duas mulheres que partilham o mesmo luto.

Cons

O PIOR: quem procura um enredo fechado ou explicações ficará frustrado. Este é um filme que vive do não-dito.

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