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Festival de Cannes | Não se metam com elas, estão furiosas!

O #Me Too chegou a França e manifestou-se em força e de várias maneiras, em artigos de opinião, livros e também nos filmes que praticamente abriram estes segundo e terceiro dias do Festival de Cannes, sobretudo com a curta-metragem “Moi Aussi”, realizada pela atriz francesa Judith Godrèche. Mas nos filmes destes dias da estreia de mais um da saga “Mad Max”, as protagonistas parecem mesmo furiosas.

Começamos com “Diamant Brut”, a primeira longa-metragem da realizadora francesa Agathe Riedinger, estreado em Competição que é uma incisiva, eficaz e dinâmica abordagem sobre uma destas jovens “influencer” de 19 anos de classe baixa, que sonha com uma ascensão social, à custa de um reality show televisivo.

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A verdade é que, este enérgico filme de estreia de Riedinger, depende bastante da sua protagonista Liane, interpretada por Malou Khebizi, uma rara figura de uma pós adolescente, que irrompe furiosamente no ecrã, na sua primeira aparição no cinema.


Diamant Brut festival de cannes
© Silex Films

“Diamant Brut”, de Agathe Riedinger

Liane uma rapariga com um físico bastante desenvolvido, que não tem medo de andar sozinha e vêmo-la a saltar muros e cercas, atravessando os quintais secos do Sul de França, com os seus calções de jeans cortadas muito curtos e sandálias de salto muito alto ou cometendo pequenos roubos nos shoppings, revendendo depois esses perfumes, pen drives, headphones, para fazer algum dinheiro para as suas extravagâncias.

Em casa, além da irmã mais nova, o clima é tenso, com uma mãe (Andréa Bescond) desempregada e sustentada por homens que estão de passagem. Além disso tem umas amigas de infância fúteis que lhe alimentam a fantasia e, sendo ela própria uma suposta influenciadora, além de seguidores da rede, também na net é viciada nos conselhos de beleza (desde bálsamo secreto para mucosas íntimas, até à cirurgia estética) e na ilusão dos reality shows televisivos.

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Uma mensagem de uma diretora de casting de mais uma temporada do programa “Miracle Island” virará a vida de Liane de cabeça para baixo: “Estamos muito interessados no vídeo que nos enviou”. Uma entrevista (aliás fascinante) parece levar Liane, a acreditar que vai ser escolhida. Só que até lá vai tropeçar várias vezes.

O filme, é de facto uma espiral de fantasia e uma busca por uma rápida ascensão social marcada pelo desespero que tem com o contraponto de um romance ingénuo com Dino (Idir Azougli), um jovem mecânico de motos, que trabalha por perto.

Se colocarmos este filme numa óptica de filmes de adolescentes dos tempos modernos este vincula-se mais aos hábitos dos filhos das classes trabalhadoras que sonham em escapar da sua realidade e alcançar a fama. E neste caso retratando uma espécie de Cosette contemporânea — a heroína d’ “Os Miseráveis“, de Vitor Hugo —, que se imagina como Cinderela (ou Barbie) no turbilhão das redes sociais.

A interpretação de Malou Khebizi é absolutamente notável, tornando a sua protagonista, que apesar de muito nova é bastante cativante, sexy — as belas as fotografias carnais de Noé Bach às suas formas, são fabulosas. Ao mesmo tempo, a miúda mostra um caráter forte, uma noção de liberdade, pese embora o tumulto ainda ingénuo de uma pós-adolescência repleta de grandes esperanças e emoções mal canalizadas.

Diamant Brut”, é um impressionante retrato de uma juventude sugada por uma mitologia das aparências e do dinheiro — se você é bonito, é admirado, se é admirado, é poderoso e se é poderoso, ganha muito dinheiro e na vida, só os bonitos têm sucesso — e sobretudo, o espelho de uma geração de jovens muito marcada pelo vício da redes sociais (a ansia de seguidores, pastagens, comentários) que neste filme torna-se também uma verdadeira personagem e a chave de toda a trama, aliás como o telemóvel com câmara.


La Jeune Femme à L'aiguille
© Nordisk Film Production via Festival de Cannes

“La Jeune Femme à L’aiguille”, de Magnus Von Horn

Também na Competição foi apresentado “La Jeune femme à l’aiguille”, de Magnus Von Horn (“The Here After”, 2005), uma longa-metragem falada em dinamarquês, em que o realizador sueco residente na Polónia, experimenta uma nova abordagem artística, com um filme de época duríssimo, com uma tema arrepiante e sensível, mas que se viu com bastante prazer e curiosidade, apesar do horário tardio: 22h30, depois de um dia intenso de escrita e sessões.

Inspirado numa controversa história da Dinamarca, que se tornou num trauma nacional, este filme narra a história da costureira Karoline (Vic Carmen Sonne), numa difícil aventura para sobreviver a todo o custo — e depois grávida — na Copenhague de 1918, no meio do esforço da WWI.

Quando a guerra termina, tem um providencial encontro com Dagmar (interpretada pela grande atriz dinamarquesa Trine Dyrholm, vimo-la por exemplo em “Nico”), uma mulher que dirige uma agência clandestina de adoção de crianças recém-nascidas. Karoline aceita um papel de ser a amamentadora e zelar pela nutrição dos bebés.

Com um elenco fabuloso onde se destacam a duas referidas atrizes, o realizador sueco propõe-nós neste filme a preto e branco — que convoca por exemplo os tons de “Guerra Fria”, de Pawel Pawlikowski — entre o drama adolescente, o thriller médico, a aprendizagem feminina e a reflexão sobre a banalidade do mal.


When the Light Breaks festival de cannes
© Compass Films via Festival de Cannes

“When the Light Breaks”, de Rúnar Rúnarsson

É muito bonito o título e o filme “When The Light Breaks”, um drama psicológico do realizador islandês Rúnar Rúnarsson, que abriu a secção Un Certain Regard a segunda na hierarquia da Selecção Oficial de Cannes e dos prémios das secções competitivas.

Trata-se de um filme subtil sobre o luto e como abordá-lo e que foi inicialmente uma curta-metragem. O filme começa ao amanhecer de longo dia de verão na Islândia. De um pôr do sol ao outro, Una (Elín Hall), uma jovem estudante de artes, encontra o amor, a amizade e de repente o desgosto, mas também a beleza, para ultrapassar a dor.

Incapaz de expressar plenamente todas as suas emoções num só dia de perda inesperada de um ente querido, Una a nossa personagem principal, parece estranha aos acontecimentos que acontecem ao seu redor, mas na realidade está no centro deles. Por causa do segredo que carrega, ela não pode reivindicar o lugar que merece no luto que está a vivenciar. Una tem portanto que abrir espaço para as emoções dos outros, preservando ao mesmo tempo a sua própria dignidade.

Além da notável interpretação da protagonista a jovem ruiva de cabelo muito curto, destaca-se ainda a capacidade do filme transmitir aquilo que não dito entre o forte no grupo de amigos interpretados principalmente por Katla Njálsdóttir e Mikael Kaaber.

Juntos, formam o núcleo com uma intensidade dramática tão forte que impulsiona a história muitas vezes de uma forma tão realista, comovente e libertadora, sem que seja necessário de grandes diálogos ou gestos. Uma pequena pérola de cinema.


furiosa
© Warner Bros via Festival de Cannes

“Furiosa”, de George Miller com Anya Taylor-Joy

De regresso está também a tempestuosa juventude de Furiosa, no quinto filme da saga pós-apocalíptica “Mad Max”, de George Miller, que estreou aqui esta manhã (Fora da Competição) e que daqui a dias vai chegar às salas em Portugal.

Mad Max: Estrada da Fúria” já tinha criado um evento, aqui no Festival de Cannes 2015. E por um bom motivo. Recordo que, na conferência de imprensa George Miller, explicou que usou nada menos que 3.500 storyboards desenhados à mão em vez de um guião, quase como se fosse uma enorme história aos quadrinhos.

Longe do primeiro “Mad Max” de baixo orçamento, mas de grande impacto em 1979, com Mel Gibson, essa quarta parte da saga ja tinha tirado bem partido dos 150 milhões de dólares de orçamento com muitos efeitos especiais e muitas acrobacias reais, em forma de perseguições no deserto da Namíbia.

Com “Furiosa: Uma Saga Mad Max”, Miller continua a sua saga de cult, destacando agora a sua poderosa heroína. É pelas origens desta personagem, arrancada da Terra Verde, que agora o realizador se vai centrar: De onde vem a Furiosa? Porquê esse desejo de vingança?

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Depois de Charlize Theron é agora a emergente atriz Anya Taylor-Joy (“O Gambito da Dama“, 2020, “Duna, Parte II“, 2024), no papel-título, que desenha com grande elegância e eficácia os contornos dessa guerreira incandescente, encarnando-a na sua juventude.

Chris Hemsworth (irreconhecível) assume um papéis principais como o formidável Dementus, curiosamente num papel de vilão bastante no oposto do se icónico “Thor“, da Marvel. Tom Burke, o notável Orson Welles de “Mank” (2020), de David Fincher, é o carismático Praetorian Jack, parceiro da heroína e notável condutor do poderoso camião-cisterna.

Aqui em “Furiosa: Uma Saga Mad Max”, o cineasta australiano toca novamente nos temas e sensações essenciais da sua obra: o movimento acelerado, a emoção ao rubro, mas ao mesmo tempo, revelando uma humanidade subjacente que vacila no meio do caos e da desordem.

Na sua essência, no entanto, os filmes não são tanto uma previsão de um futuro violento, mas sim uma denúncia da barbárie climática do nosso presente capitalista e do individualismo implacável que o mantém. Estamos alerta!


moi aussie cannes
© Les Créations Androgyne via Festival de Cannes

“Mou Aussie”, de Judith Godrèche marcou o Festival de Cannes

Por último, o movimento “#Me Too” francês, foi redescoberto ou melhor posto a nu também aqui no Festival de Cannes 2024 pela atriz Judith Godrèche. E assim a curta-metragem inédita “Moi aussi”, uma comovente criação em que a atriz pegou ela própria na câmera, foi exibida com a sua presença na cerimónia de abertura de Un Certain Regard, antes da passagem de “When The Light Breaks”.

Tradução de “Me Too”, este título soa com alguma eloquência ecoando obviamente no movimento pela liberdade de expressão na indústria cinematográfica francesa.

Porém este projeto representa muito mais do que um simples filme. É uma tentativa de dar voz coletiva às vítimas de violência sexual. Cerca de mil testemunhos foram integrados anonimamente no filme, uma coreografia realizada numa rua de Paris com várias mulheres e homens, sendo cada fragmento do discurso, a história desses testemunhos, contado por uma jovem interpretada por Tess Barthélemy, a filha da atriz-cineasta.

Com a participação da coreógrafa Eva Galmel e música original do grupo Faux-Amis, o pequeno filme reinventa e reapropria-se da linguagem e das voz, que tantas vezes falta às vítimas de abuso sexual.

Festival de Cannes em direto:

Qual destas obras vais ver primeiro? Conhecias o trabalho de Judith Godrèche?

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