O Passado Reinventado em “Nouvelle Vague” de Richard Linklater e “Renoir” de Chie Hayakawa | Diário de Festival de Cannes (Dia 7)
Do tributo apaixonado de Richard Linklater à “Nouvelle Vague” à delicadeza emocional de “Renoir” de Chie Hayakawa, Cannes 2025 vive entre fantasmas do passado e a dor do amadurecimento. Um diário de viagem por dois filmes que exploram a memória como arte cinematográfica.
A meio do Festival de Cannes de 2025, duas obras singulares estão a provocar murmúrios e discussões apaixonadas nas ruas à volta da Croisette e nas salas de imprensa do Palais dos Festivais. Nouvelle Vague, de Richard Linklater, e Renoir, de Chie Hayakawa, não podiam ser filmes mais diferentes nos seus registos — um é metacinema exuberante sobre a génese da grande revolução estilística do cinema francês; o outro, um drama íntimo sobre a infância e a perda. Mas ambos dialogam com o passado, com os seus mitos e as suas feridas, e os dois são retratos tocantes de como o cinema pode reconstituir memórias e sensibilidades.
Linklater recria Godard: um filme dentro do filme
Com Nouvelle Vague, o norte-americano Richard Linklater realiza talvez o seu mais ousado e amoroso gesto cinematográfico: revisitar o nascimento de O Acossado (À Bout de Souffle, 1960), de Jean-Luc Godard, pedra angular do movimento Nouvelle Vague. Rodado em francês e filmado em Paris como se estivéssemos em 1959, o projeto respira cinefilia e um entusiasmo quase juvenil por fazer cinema.
Um minuciosa recriação
No centro do filme está a recriação minuciosa dessas agitadas filmagens de O Acossado, agora com Zoey Deutch a interpretar Jean Seberg com um corte pixie à altura e o quase desconhecido ator francês Guillaume Marbeck a encarnar Godard — igualzinho desde a gestualidade à voz — num terno escuro e óculos espelhados; além do outros atores franceses pouco conhecidos do grande público, a recriarem outras grandes figuras do movimento artístico (Jean-Paul Belmondo, François Truffaut, Jaques Rivette Agnès Varda) e toda aquela ‘malta’ da redação dos Cahiers du Cinéma.
Liberdade e improvisação
A atenção de Linklater aos detalhes históricos não é gratuita: o filme não quer apenas reconstituir um momento, mas habitar o espírito de improvisação e liberdade que caracterizou a própria Nouvelle Vague. “Todo cineasta deveria fazer um filme sobre fazer um filme”, disse Linklater durante a apresentação do filme em Cannes. E aqui, ele cumpre esse desejo com uma obra que é ao mesmo tempo homenagem, carta de amor e manifesto. Nouvelle Vague lembra-nos que o cinema é um gesto de invenção constante, mesmo quando olha para trás.
“Renoir”: a infância suspensa de Hayakawa
Se Nouvelle Vague, o filme de Richard Linklater olha para um passado coletivo da cinefilia, Renoir, da japonesa Chie Hayakawa, mergulha-nos no íntimo da sua própria infância. Ambientado em Tóquio, em 1987 — durante os últimos anos da bolha económica japonesa —, o filme segue Fuki (Yui Suzuki), uma menina de 11 anos que vive entre a doença terminal do pai e o colapso emocional da mãe. É um verão lento, feito de silêncios e gestos pequenos, onde a realidade e a imaginação se confundem.
Uma referência ao pintor impressionista
Hayakawa, que já havia impressionado com Plan 75 (apresentado na Un Certain Regard em 2022), demonstra aqui maturidade e subtileza na forma como filma o luto infantil. Fuki, interpretada com doçura e mistério por Yui Suzuki, é uma heroína silenciosa que procura compreender o mundo com os seus próprios códigos. A realizadora, mãe e agora adulta, disse à Variety: “Agora compreendo os meus pais. E essa empatia muda tudo”.
Visualmente delicado e sensorial, com fotografia de Hideho Urata e música do compositor francês Rémi Boubal, Renoir é menos uma narrativa tradicional e mais uma evocação poética da perda e da formação do eu. O título, a possível referência a Renoir, o pintor impressionista, cujo um quadro, aparece simbolicamente em dois momentos do filme, evoca também a tentativa de captar a luz emocional de uma época que já não existe.
A memória como protagonista
Entre a reencenação histórica de Nouvelle Vague e a reconstrução emocional de Renoir, Cannes 2025 parece novamente refletir sobre o poder do cinema enquanto ferramenta de memória. São dois filmes muito distintos, mas ambos mostram como a arte pode recriar — e até curar — aquilo que passou.
Linklater trabalha com os mitos do cinema, reativando uma estética revolucionária; Hayakawa, por seu lado, devolve-nos a fragilidade de uma infância marcada pelo silêncio e pela ausência. No fundo, são duas formas de reencontro com o passado: uma com câmaras e cigarros nos cafés parisienses, outra com lágrimas silenciosas num quarto japonês.
Cannes entre fantasmas e revelações
Cannes tem sido, muitas vezes, um palco onde o passado e o futuro se encontram. Este ano, essa tensão surge com clareza nestes dois filmes — e talvez seja isso que os torna tão poderosos. Ambos demonstram que o cinema continua a ser uma arte viva, feita de ecos, reinvenções e feridas abertas.
Enquanto os ‘festivaleiros’ discute já ainda falta quase uma semana, os favoritos à Palma de Ouro 2025, Renoir desponta subtilmente como forte candidato pela sua humanidade comovente, e Nouvelle Vague já conquistou corações entre os cinéfilos por celebrar a arte de fazer cinema. Seja qual for o desfecho da competição, Cannes 2025 já ficou marcado por estes dois filmes que nos lembram que, para avançar, o cinema também precisa — e muito — de olhar para trás.
JVM