O Abraço da Serpente, em análise
O Abraço da Serpente é uma febril e íntima epopeia anticolonialista e uma obra complexa, mas surpreendentemente coerente na sua ambição temática e ideológica, onde a estruturação narrativa se divide em duas linhas, espiritualmente ligadas que estão, no entanto, separadas pelo tempo.
O Abraço da Serpente de Ciro Guerra tornou-se o primeiro filme colombiano a alcançar a tão desejada indicação ao Óscar de Melhor Filme numa Língua Estrangeira, uma honra que nenhuma produção portuguesa alguma vez teve o prazer de receber. Por vezes, tal reconhecimento pode ser indicativo, não de grande cinema, mas de temáticas valorizadas pelo corpo votante da academia que adora fórmulas, ou de convencionalismos que tornam cinema internacional em apenas uma cópia das linguagens cinematográficas americanas e, consequentemente, fácil de digerir de um ponto de vista estético. Interessantemente, O Abraço da Serpente parece contornar tais possibilidades, apresentando-se como uma obra de ousada formalidade. Para além do mais, por muitas críticas que se possam apontar para com a mais recente criação do realizador Ciro Guerra, uma delas não será certamente a falta de ideias. A anemia ideológica que ataca tantos filmes, especialmente aqueles que caem na graça dos Óscares, não se regista em O Abraço da Serpente e, se possível, o contrário ocorre.
Quando chegamos ao fim deste filme, poderemos nos aperceber que observámos uma obra em que os protagonistas, longe de serem identidades de pessoas individuais, são a floresta, a cultura indígena e a corrupta poluição do colonialismo europeu que tudo envenena com a sua passagem. No entanto, se há um protagonista humano ele é Karamakate, um xamã indígena da tribo Cohiuano, que, em duas fases da vida muito distintas, ajuda um ocidental em viagem pelos mistérios da Amazónia. Na porção mais distante do nosso presente, ele é interpretado pelo jovem e musculado Nibio Torres, e a sua narrativa gira em torno da viagem do etnógrafo alemão Theo Von Martius pelos rios amazónicos. O germano encontra-se em busca de uma planta com propriedades medicinais que poderão ser a sua última esperança pela sobrevivência e apenas o jovem xamã parece capaz de o guiar até ao seu destino. Muitas décadas depois, o mesmo cenário repete-se e Karamakete, agora interpretado pelo envelhecido Antonio Bolivar, é de novo responsável por guiar um cientista ocidental, agora um botânico chamado Evan, através da sua floresta natal, em busca da mesma planta com as suas propriedades misteriosas.
Os atores responsáveis pela interpretação do protagonista são de herança nativa e não profissionais, o que estonteia o espetador quando este é confrontado com a monumentalidade dos seus trabalhos. Torres é uma volátil explosão de indignação em forma humana, alimentado pela impetuosa energia de uma juventude tão agressiva como imatura. Bolivar, por outro lado, confere ao filme um peso melancólico que é tão doloroso como brilhante. Na sua postura e olhar, vemos um homem que carrega sobre as suas costas, o conhecimento que com ele morre uma cultura, um povo, uma humanidade esquecida, e que a sua própria memória o está a trair, esvanecendo-se e convertendo-o num espectro vivo. A grande tragédia humana contida nas narrativas de O Abraço da Serpente é o modo como a relação precária entre civilização e mundo natural se reflete na relação espiritual entre um homem envelhecido e o seu passado, que se vai tornando cada vez mais inalcançável pela crueldade da memória obscurecida pelo oblívio.
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Ambas as figuras ocidentais, ao contrário de Karamakate, são inspiradas por personagens reais da história, sendo que o filme foi parcialmente baseado nos diários de Theodor Koch-Grünberg e Richard Evans Schultes, aquando das suas separadas viagens aos confins do Amazonas. Jan Bijvoet e Brionne Davis têm, por consequência, responsabilidades interpretativas muito diferentes das dos protagonistas colombianos. Se Davis é um pouco esquecível na sua encarnação, Bijvoet é uma memorável e cadavérica presença, uma constante tempestade de sofrimento febril que soberbamente incorpora as duas facetas da sua figura, a do ser humano histórico e a da metáfora de um ocidente sedento e materialista que, no seu desespero, explora implacavelmente estas terras longínquas, sendo monstruoso mesmo quando o faz sob fachadas de generosa e empática humanidade.
Numa das mais marcantes sequências de todo o filme, a narrativa momentaneamente descamba num inferno pós-colonialista que recorda as visões despertas pela obra de Joseph Conrad. Como uma doença infeciosa, o cristianismo trazido pelas missões é mesclado com os aspetos mais violentos das religiões indígenas, resultando numa mutante mini civilização que não poderia ser uma mais descarada metáfora dos danos irreparáveis do colonialismo. O pior de duas culturas torna-se numa virulenta pestilência que apenas pode resultar em macabra carnificina. Este pesadelo é uma das sequências mais aterradoras do recente cinema internacional, e o que poupa em subtileza generosamente oferece em arrepiante intensidade. Essa transação de nuance por bombástica simbólica, quase mítica, diz muito sobre a formalidade que domina O Abraço da Serpente.
A abordagem de Guerra é rica num sentido de misticismo, que eleva uma história de duas viagens a proporções mitológicas. Talvez mais crucial ainda, que a fotografia com as suas imagens líricas ou a sonoplastia que torna a selva numa catedral de alienantes sons naturais, é a montagem. Na união das duas histórias, Guerra e o editor Etienne Boussac, recusam-se a conceber uma esquemática tapeçaria temporal e narrativa, criando algo mais fluido e mais próximo da poesia. O som e a narrativa chamam, e a imagem responde, e vice-versa, o simbolismo e a alucinação andam de mão dada com a relativa realidade da história e tudo ocorre com um fluir que desafia usuais convencionalismos estruturais e assemelha o ritmo do filme ao natural movimento das águas fluviais que tanto dominam as suas cenas.
Apesar de todas estas glórias cinematográficas, este nomeado aos Óscares está longe de ser uma obra perfeita. Em alguns dos seus momentos mais estilisticamente agressivos, O Abraço da Serpente consegue ser bastante reacionário, relembrando muitas obras semelhantes de décadas passadas com que, infelizmente, este filme, por muito fascinante que seja, não se pode sequer comparar em termos de impacto, qualidade ou mera criatividade cinematográfica. Também o seu uso constante de simbolismo animal consegue transcender o lirismo cinemático e tornar-se numa convenção autoimposta e que se torna numa irritante insistência estilística à medida que o filme avança.
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Escrever sobre O Abraço da Serpente e nada mencionar do seu clímax seria um crime pois aí, Guerra concebe algo ainda mais desconcertante que os já mencionados horrores religiosos, levando o seu filme a desfragmentar-se numa viagem psicadélica que lembra momentos semelhantes em 2001: Odisseia no Espaço. Toda a linguagem que O Abraço da Serpente tem vindo a cultivar com a sua abordagem estilística, ora se eleva a níveis de excesso barroquista, ou é substituída por uma experimentação enlouquecida que introduz cor, completa abstração e um artificialismo divino. O som explode, a imagem enlouquece, a racionalidade estética vai borda fora, e, por alguns celestiais minutos, o filme entra num panorama de cinema rarefeito. Imagem e som, montagem e energia cinemática são a única coisa que existe. Tal criação poderá certamente ser encarada como a óbvia prova da hubris e da pretensiosa ambição de Guerra, mas não há dúvida que é um momento que merece a atenção de qualquer cinéfilo, e que deve ser experienciado em toda a glória possibilitada pelo santuário da igreja fílmica que é a sala de cinema.
O MELHOR: Os seus ritmos serenos e fluidos que esbatem barreiras temporais e narrativas.
O PIOR: O modo como o uso excessivo de imagens forçosamente simbólicas depressa se começa a tornar demasiado expectável e distrativo.
Título Original: El embrazo de la serpiente
Realizador: Ciro Guerra
Elenco: Nilbio Torres, Jan Bijvoet e Antonio Bolivar
Alambique | Drama | 2015 | 125 min
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