O Clube de Dallas, em análise
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Somos tentados em reproduzir, a propósito de “O Clube de Dallas”, aquela expressão cliché que nos diz que “sem bons ovos, não se faz uma boa omelete.” Tudo se complica quando esses ovos – que, para o caso em questão, é um objeto singular – já pareciam estar fora de prazo. Falamos, como não poderia deixar de ser, de Matthew McConaughey cuja mais recente carreira deveria ser alvo de um caso de estudo aprofundado. Matthew era aquele ator pelo qual não dávamos dois tostões – o ovo fora de prazo – mas que tem sido capaz de suplantar os ‘pré-conceitos’ que a generalidade do público tinha sobre ele: ele era o playboy texano que exibia os seus abdominais em comédias românticas e agora – e que não haja a mínima dúvida disso – é um dos atores do momento em Hollywood. Semelhanças? Talvez só o facto de continuar a ser do Texas.
Mas o que terá levado o nosso texano a trocar “Resistir-lhe é Impossível” por “Killer Joe” ou “Minhas Adoráveis Ex-Namoradas” (também com Jennifer Garner) por “Fuga”, ”O Lobo de Wall Street” ou até mesmo “Magic Mike”? O segredo desta metamorfose reside num conceito muito simples: a consciência de que, desta forma, é o Cinema que sai a ganhar.
Parece que os 23 quilos (mais coisa, menos coisa) que Matthew McConaughey perdeu para compor a sua heróica personagem foram convertidos em tanto ou mais quilos de genialidade interpretativa que subsiste, mesmo que a narrativa em que esta está inserida nem sempre esteja à altura da sua performance. E é aqui o ponto a que queríamos chegar: importa muito pouco falar da linearidade do argumento de “O Clube de Dallas” e da sua estrutura pouco criativa (a fazer lembrar, em certos pontos, um telefilme), porque nele estão acopladas duas das melhores interpretações do ano. McConaughey é um deles, mas Jared Leto não lhe fica nada atrás.
Os intérpretes carregam o filme às costas e elevam-no a um patamar que este, por si só, dificilmente seria capaz de alcançar. Baseado em factos verídicos, “O Clube de Dallas” acompanha Ron Woodroof (McConaughey), um cowboy do Texas cuja vida sofre uma reviravolta quando em 1985 lhe é diagnosticado o vírus da SIDA e dado 30 dias de vida. Woodroof é um bon-vivant (e Don Juan) homofóbico que, perante as circunstâncias da vida, se vê transformado num Messias na luta contra a doença e contra o sistema médico que a controla, e que encontra um débil mas poderoso pilar no travesti Rayon (Jared Leto) que se torna seu companheiro de negócios.
Apesar da sua premissa, “O Clube de Dallas” torna-se muito mais do que uma história sobre o poder da resiliência humana. É também uma crítica bastante vincada ao corrupto sistema de aprovação e distribuição de fármacos nos anos 80 que impediu a sobrevivência de milhares de cidadãos infetados com o mortal HIV e, no fundo, é também um ‘filme-alerta’ que expõe a realidade nua e crua sobre essa temerária doença e as suas incompreendidas e preconceituosas origens.
É uma pena que realizador Jean-Marc Vallée se socorra da simplicidade de processos quando, por vezes, o material poderia potenciar situações mais arrojadas. Como aquela que vemos na cena de abertura, por exemplo, onde o simbolismo do ato sexual – sujo e anónimo – encontra paralelismo no rodeo na arena que se faz do outro lado da grade, onde um homem se senta em cima de um animal e desafia o seu destino em movimentos sinuosos. É a morte ao virar da esquina para ambas as situações… e nós, ali observar com cuidado aqueles movimentos, ficamos indecisos sobre qual o ato mais fatal.
No entanto, e apesar de “O Clube de Dallas” não ser dado a revoluções nos processos criativos, não podemos negar a veemência com que desconforta a audiência. Woodroof e Rayon carregam a cruz do sofrimento que se sente, inevitavelmente, do outro lado da tela. As elipses temporais (que vão cronometrando os dias de sobrevivência de Woodroof para lá dos trinta dias) oferecem alguma esperança de que aquela viagem até à morte certa seja acompanhada de sorte e vida, mas são alguns sucessivos slow-motions que anulam essa esperança e que tornam aquela jornada em algo sofrido e profundamente impiedoso (curioso o disfarce de Woodroof a certa altura ser o de um padre – como se a fé fosse a sua luz ao fundo do túnel). Ainda neste âmbito, ficam evidentes algumas deficiências na montagem que cortam, por diversas vezes, o pendor dramático de algumas passagens estavam a assumir – parece-nos que se passou à cena seguinte quando a cena anterior ainda não teria sido completamente finalizada – e acentuam também, através dos inúmeros cortes, o caráter episódico da narrativa que em nada contribui para a sua fluidez.
Chegamos, por fim, ao ponto que queríamos: McConaughey & Leto. Sem muitos alongamentos (e porque tudo o que teríamos a dizer sobre eles nunca lhes faria total justiça), venham os Óscares. Venham porque eles merecem. Venham porque se dedicaram aos seus papéis de forma incansável, perdendo peso que muito poucos em Hollywood seriam capazes de perder e venham porque compuseram duas das mais importantes do ano cinematográfico: portentosas, magnéticas e absolutamente ricas.
No caso de Leto – que rouba todas as cenas onde surge – fica inequívoco de que a fragilidade aparente de Rayon só é originada pelo seu estado de saúde. Inspirado nas Rayon(s) que existem por esse mundo fora – como até o referiu no discurso dos Globos de Ouro – Jared Leto percebeu que, apesar do vírus do preconceito ter um papel preponderante na formação da personalidade de um interveniente desta natureza, não há preconceito algum que possa provocar tantos dados como o outro vírus: o da SIDA. Quando Rayon e Woodroof se encontram num estado natural, percebemos a real complexidade do trabalho de McConaughey e Leto que conseguem transitar entre os mais variados estados de energia e colocar-nos numa montanha russa de emoções que parece não ter um ponto estacionário.
“O Clube de Dallas”, evidentemente com recursos reduzidos, pode até nem ser um dos grandes filmes do ano, mas nem precisa de o ser. Quem tem uma dupla com esta qualidade, não precisa de mais nada. Já tem tudo.
DR