"On Becoming a Guinea Fowl" | © A24

On Becoming a Guinea Fowl, a Crítica | Rungano Nyoni em competição no IndieLisboa

“On Becoming a Guinea Fowl” de Rungano Nyoni é grande destaque da competição internacional do 22º IndieLisboa. O festival ainda agora começou, mas já podemos afirmar que este será um dos seus melhores filmes.

Numa estrada rural, algures na Zâmbia, uma viatura viaja de noite. A realizadora Rungano Nyoni, mais conhecida pela sua primeira longa “I Am Not a Witch,” filma o carro como uma dissonância de movimento, um ponto de luz irrequieta sob um luar sereno. Nota-se logo o primor na linguagem audiovisual em jogo, disciplina e formalismo em jeito severo. O contraste é, por isso, meio caricato quando a câmara se aproxima e vislumbra a condutora. Shula, tão estoica quanto os enquadramentos, está vestida para baile de máscaras, com uma fantasia de Missy Elliott no videoclip de “The Rain.” Ou seja, o corpo é um balão insuflado que mal cabe atrás do volante e a cara está obscurecida por óculos-de-sol extravagantes, quase um capacete de brilhantes.

Lê Também:
FEST '18 | I Am Not a Witch, em análise

Será difícil não esboçar um sorriso perante tal absurdo, mas o humor não é o único tom em jogo nesta cena de abertura. Porque, no meio da estrada, Shula encontra um cadáver. E, longe de ser um estranho, trata-se do tio. O mais estranho, contudo, é a completa inexpressão da mulher, o estoicismo vingando acima de qualquer choque. Esperamos um clarão de luto, a dor da perda, raiva, surpresa, algo. Mas nem Nyoni nem a sua atriz principal, Susan Chardy, nos concedem a catarse da emoção exteriorizada. O mesmo não se pode dizer de Nsansa, prima de Shula, que aparece do nada, vinda da mesma festa, bêbeda e extravagante. Se Chardy tudo suprime, Elizabeth Chisela interpreta a sua personagem como um livro aberto.

Tragédia e comédia de mãos dadas.

on becoming a guinea fowl critica indielisboa
© A24

Pelo menos, essa é a impressão com que ficamos perante a farsa descontextualizada desse primeiro salvo de “On Becoming a Guinea Fowl.” Tudo é um mistério, desde a apatia quase patológico da mulher balão até à gritaria, riso e discórdia da prima ébria, passando pela aparição de uma presença espectral. Dito isso, até aí, Nyoni nos troca as voltas. Ao invés do Tio Fred em jeito de fantasma, o espírito é o de uma menina. Mais tarde, entenderemos que se trata de Shula, sua inocência perdida às mãos do homem que jaz defunto no alcatrão. Engasgados entre o riso nervoso e a gargalhada plena, um misto de tristeza e curiosidade frustrada, o espectador é guiado pela cineasta numa aventura até às profundezas desta família, seus segredos, seus muitos silêncios.

Os dias desdobram-se e a indiferença de Shula persiste, participando como uma autómata disfuncional nos ritos fúnebres que a tradição exige. Nesse sentido, “On Becoming a Guinea Fowl” arrisca o estudo etnográfico, meio sociológico, dos costumes zambianos, observando o teatro cristão da perda com um olho crítico, bem atento às hipocrisias latentes e aspetos mais desumanos. Articula-se um diagnóstico de uma cultura sustentada na discriminação de género e uma hierarquia de classes definida pelo poder económico, pelo sangue e pela devoção religiosa. E tudo isso acontece em jeito quase screwball, com o melodrama a tombar no circo sem que Shula alguma vez altere a impavidez da sua expressão.


Familiares, especialmente as matriarcas, insistem nos respeitos prestados ao tio, recrutando a protagonista para os afazeres tradicionais. Isso vai desde o choro compulsivo até à cozinha, onde as mulheres preparam festins e servem os homens como suas criadas. Pelo meio, coscuvilhices e maldizeres espalham-se como uma infeção, mas nunca são sobre o morto. Na verdade, a figura mais vilificada pelo coletivo é a viúva, mulher ainda mais jovem que Shula cujas origens humildes a definem como monstro ganancioso aos olhos de muitos. Gradualmente, a comédia vai-se amargando até que é difícil conter um grito de fúria a irromper pela garganta fora.

Logicamente, essa é a estrutura que mais define a dramaturgia de Nyoni, sua estratégia de retrato coletivo e singular, do sistema patriarcal que desculpa tudo aos homens e da mulher zambiana enquanto contradição. “On Becoming a Guinea Fowl” começa como um mistério onde nada se entende e acaba com toda a roupa suja posta a descoberto, os crimes de uma família revelados para a audiência. Shula também começa no silêncio e termina aos gritos. Ou melhor, grunhidos, quiçá um uivo ou o piar da ave pintada que dá nome à fita. Como muito neste argumento, é uma referência que só se entende depois de muita incógnita, quando o puzzle se completa e um programa infantil mal lembrado se mostra recordação sinistra.

A crítica social é feroz. O cinema é sublime.

on becoming a guinea fowl indielisboa critica
© A24

Convém dizer que Rungano Nyoni não está interessada em construir um filme enquanto teste à inteligência do espectador, enquanto caixinha de surpresas ou problema a resolver. Pelo contrário, “On Becoming a Guinea Fowl” tem uma enorme confiança no seu público e desvenda os seus segredos numa lógica orgânica que põe sempre a dignidade das personagens acima de outra qualquer preocupação. A perspetiva da cineasta é lúcida e lacerante, mas também é capaz de ver qualidades nos sistemas que fomentam o veneno de abusos escondidos, abafados, talvez até perdoados de acordo com essencialismos de género e a tirania dos bons costumes.

E aí está outro assunto que o filme confronta, destemido e sem papas na língua – o perdão. Será que isso ajuda aquele que foi violentado ou só serve para fazer com que as vítimas sejam submissas ao status quo onde a sua humanidade é sempre secundária à reputação de quem as magoa. Não será a insistência na generosidade de espírito mais um modo de suster sistemas perigosos e perpetuar os crimes dos que, apesar de enterrados a sete palmos de terra, ainda assombram os vivos? Nyoni não tem resposta definitiva, nem moralismos prescritivos para oferecer. Nem mesmo a catarse de um abraço entre várias gerações de mulheres se manifesta como um bálsamo. Não quando o gesto vem minado de segundos interesses.

Lê Também:
A Volta ao Mundo em 80 Filmes

“On Becoming a Guinea Fowl” nunca deixa de fazer rasteiras à audiência, apoiando-se num elenco de luxo e construção audiovisual igualmente exemplar. Entre os atores, Chisela destaca-se pela sua habilidade de modular o maximalismo apalhaçado de Nsansa, partindo-nos o coração no mesmo momento em que nos conquista a gargalhada. A montagem de Nathan Nugent é essencial para os balanços de tom, género e devastação emocional, enquanto o cinematógrafo David Gallego ajuda Nyoni a conceber imagens tão marcantes como uma bela adormecida num dormitório alagado. Todos os elementos deste filme são sublimes e deviam ter valido a “On Becoming a Guinea Fowl” um lugar na competição principal em Cannes ao invés da secção paralela em que estreou. Enfim, no IndieLisboa, a fita tem direito ao destaque que sempre mereceu.

On Becoming a Guinea Fowl, a Crítica
on becoming a guinea fowl critica indielisboa

Movie title: On Becoming a Guinea Fowl

Date published: 3 de May de 2025

Country: Zâmbia, Reino Unido

Duration: 99 min.

Director(s): Rungano Nyoni

Actor(s): Susan Chardy, Elizabeth Chisela, Doris Naulapwa, Mary Mulabo, Norah Mwansa, Gillian Sakala, Benson Jumba, Henry B.J. Phiri, Blessings Bhamjee, Roy Chisha

Genre: Drama, Comédia, 2024

  • Cláudio Alves - 90

CONCLUSÃO:

Depois de “I Am Not a Witch,” Rungano Nyoni regressa à ribalta com “On Becoming a Guinea Fowl,” uma narrativa zambiana que mistura tons e preceitos de género, vai contra as expetativas do espectador e nunca deixa de surpreender. Apesar do grito insurgente à volta do qual a fita se constrói, não se deve julgar o trabalho sem nuance. Pelo contrário, este é um projeto multifacetado que prima pela delicadeza com que a cineasta aborda temas sensíveis sem nunca cair no sensacionalismo.

O MELHOR: O trabalho dos atores, especialmente o triunfo tragicómico de Elisabeth Chisela, inesquecível desde a bebedeira da primeira cena até à ruína emocional dos seus últimos momentos.

O PIOR: Nada a apontar.

CA

Overall
90
Sending
User Review
0 (0 votes)

Loading poll ...
Em breve
A Tua Opinião Conta: Qual dos serviços mais usas?

Também do teu Interesse:



About The Author


Leave a Reply