TIFF ’24 | Um festival de cinema com ecos de Cannes e surpresas de Kurosawa
Pela primeira vez, a MHD está no Toronto International Film Festival. Durante os próximos dias, vamos relatar o que se passa no TIFF e fazer o diário dos filmes vistos.
Neste Artigo:
O Toronto International Film Festival é um dos maiores festivais de cinema à escala mundial, esmagando a concorrência Norte-Americana como se nada fosse. De facto, é um dos eventos cinematográficos mais recheado de estrelas a realizar-se anualmente. Isto deve-se à sua grande influência na corrida para os Óscares. Qualquer candidato que se prese quer marcar presença nas salas do TIFF e dar aí início à campanha para os prémios. Tanto assim é que o Prémio do Público entregue no fim das celebrações se considera um dos maiores precursores para o troféu mais cobiçado de Hollywood. Os números não enganam.
Dito isso, há muito mais em Toronto do que obras prestigiadas à procura de ouro. Também se vê cinema de autor, experimental, e muitas das melhores novidades do mundo além de Hollywood. Já é tradição, para críticos e audiências regulares, os primeiros dias do TIFF serem grandemente dedicados aos títulos exportados diretamente de Cannes, com destaque sempre dado aos favoritos da crítica e vencedores de prémios. De facto, dos seis filmes que vimos hoje, cinco já fizeram passagem na Croisette, incluindo aquele que é provavelmente o melhor filme do ano. Infelizmente, o dia não começou com um triunfo.
“A Rapariga da Agulha” devia ter outro título.
De muitas formas e mais algumas, 2020 foi um annus horribilis. Até em cinema isso aconteceu, mesmo com o advento de muitas obras-primas. Essas maravilhas perderam-se no clima pandémico, sem o furor das salas ou a possibilidade de uma campanha promocional normal. “Sweat” de Magnus von Horn sofreu esse fado, mas afirma-se como um dos grandes estudos de personagem a estrear em tempos recentes, dissecando o lavoro dos influencers com empatia e astúcia, uma precisão que nos deleita tanto quanto choca. “A Rapariga da Agulha,” nova fita do cineasta depois desse sucesso é uma relativa desilusão.
Trata-se de uma façanha de cinema true crime por vias oblíquas, sendo que o verdadeiro foco da fita não é a moça titular. Pelo contrário, ela é uma observadora meio passiva que sofre todas as mortificações imagináveis numa Dinamarca do pós-Primeira Guerra Mundial e que, no seu trilho picaresco, se depara com uma figura histórica. Será Dagmar Overbye, uma assassina em série, culpada da morte de numerosos bebés. Mais do que se preocupar com a protagonista ficcionada, von Horn está obviamente fascinado pelo monstro que colocou em posição periférica, desequilibrando todo o esforço narrativo. Deviam era ter chamado ao filme “A Mulher com o Carrinho de Bebé.”
Nesta situação, a personagem principal parece um esboço, incapaz de sustentar uma epopeia pessoal de tragédias sem fim. Um problema ainda maior será o oposto do que aconteceu em “Sweat.” A generosidade e olhar curioso desse filme deram lugar a um gosto pelo choque fácil, o grotesco e o cruel. O que salva “A Rapariga da Agulha” é só mesmo o primor técnico com que von Horn e sua equipa executam as premissas propostas. Em branco-e-preto aguçado, o filme dança em torno do terror, imergindo o espetador numa visão diabólica do mundo, onde não há inocência e só o sofrimento nos acorda da dormência apática de cada dia.
Mohammad Rasoulof em luta pela liberdade.
As temáticas não aliviaram com o segundo filme do dia. “The Seed of the Sacred Fig,” vencedor de um prémio especial do Júri em Cannes, é como um grito de raiva pela parte dos cineastas contra um estado opressor. Especificamente, Mohammad Rasoulof interessa-se pela condição feminina no Irão moderno e engendra um enredo requintado para levar à faca a sociedade patriarcal do seu país. Fazê-lo enquanto também desvenda um drama arrebatador de estrutura inesperada é um milagre cinematográfico do mais alto gabarito. De facto, esta gema de cinema político merece ovação de pé.
E nem tem que ser só pela qualidade da fita. A coragem dos artistas merece tanto ou mais aplausos. Afinal, muitos dos atores já estiveram sob vigilância policial devido ao filme e Rasoulof até foi preso, gerando uma controvérsia internacional. O governo iraniano até exigiu que Cannes retirasse “The Seed of the Sacred Fig” do seu problema. Imaginamos que, para além do texto, da centralidade de um juiz enquanto símbolo de um sistema injusto, o uso de vídeos das redes sociais terá estado na raiz de muito alarido. São imagens reais, uma confrontação direta entre o espetador e a realidade retratada, sem mediações, sem estribeiras.
Uma salva de palmas para o cinema português.
“Grand Tour” valeu o Prémio para Melhor Realizador a Miguel Gomes quando competiu em Cannes, um marco na história do nosso cinema nacional. Essa honra é bem justificada pelo sonho cinematográfico com que o artista nos abençoa, uma narrativa de odisseia duplicada através da Ásia em tempos crepusculares do Império Britânico. Trata-se de um sonho colonial trespassado com grande fatalismo, críticas implícitas à presença incerta desses Europeus em terras que não compreendiam. Mas não se trata de um projeto panfletário. Se o é, fará o ativismo pela magia do cinema, essa qualidade onírica, capaz de tornar o ecrã num portal com infinitos destinos.
Em preto-e-branco e cor, com três diretores de fotografia à mistura, filmagens à distância e selvas reproduzidas em estúdio lisboeta, “Grand Tour” celebra o artifício da sétima arte e força-nos a considerar a beleza que nos rodeia. Esse ponto faz-se no contraste entre as duas personagens principais, um noivo em fuga e sua esposa em perseguição internacional. Um vê o desespero constante, mas vive em corpo forte. Nada o impede de ser feliz – só ele mesmo. Ela, por seu lado, está disposta a tudo, aberta a tudo. A tragédia está na consignação do seu espírito livre a um corpo doente que não o consegue suster.
Mas “Grand Tour” não é tragédia, convém dizer. Aliás, rejeita essa possibilidade a altos modos, escolhendo deliberadamente o caminho da esperança, do sonho, do amanhã. Até a morte se pode contrariar com o cinema, o tempo contrai-se e o espaço também. Damos um passo em cenário fechado e viajamos até outro continente. Desviam-se os olhos do ontem e encontram o hoje, sobrepostos como um palimpsesto cinematográfico. Estes feitiços de celuloide são difíceis de explicar sem cair na poesia, pelo que vamos ser diretos. “Grand Tour” comprova que algum do melhor cinema do mundo se faz em Portugal e há que ver para crer.
Faz-se um funeral disfuncional na Zâmbia.
“On Becoming a Guinea Fowl” é um dos filmes mais reveladores do ano e é daqueles que deve ser visto com o mínimo de informação possível. Há que sentir o caminho da descoberta, seguros nas mãos de uma cineasta que nos conta vidas inteiras num olhar, na composição estranha de uma filha a mentir ao pai, no retorno de imagens infantis à psique adulta. Por isso mesmo, tentaremos ser vagos e respeitar o mistério que Rungano Nyoni edificou. Tudo começa à noite, nas ruas desertas de uma localidade Africana, onde passa uma viatura com condutor apalhaçado. Em óculos de fantasia e um macacão inchado, ela é uma visão de absurdos.
Ela é Shula e, a caminho de casa, depara-se com o cadáver do tio no meio da estrada. Em noite cerrada – noite de festa com máscaras, ainda por cima – a família é desamparada no suplício da perda e todos os ritos que ela exige. Mas como fazer o luto a quem não tínhamos amor? Como perdoar aqueles que nos fizeram mal sem desrespeitar a memória dos vivos? E será que proteger a reputação dos mortos não é uma perpetuação dos seus crimes? “On Becoming a Guinea Fowl” explora tudo isso e mais com sagacidade e muito humor, um olho apurado para o circo da tradição sem fundamento e as pressões do machismo enraizado na cultura, na forma de viver e ver o mundo.
Kiyoshi Kurosawa é o mestre das surpresas.
Se Nyoni nos surpreende, Kiyoshi Kurosawa faz isso a triplicar e com mais estilo ainda. Aliás, ele é o rei da imprevisibilidade cinematográfica, saltando de género em género de modo a que o espetador nunca saiba o que esperar do seu trabalho. “Cloud” faz essa façanha e fá-lo parecer fácil, articulando uma crítica ao capitalismo moribundo antes de trocar as voltas ao espetador, às personagens e talvez à própria realidade. Começa por ser só um sentimento estranho, facilmente ignorável. Algumas bizarrias aqui e ali. Mas um dia, tudo explode e um homem comum, quase patético, passa a viver um pesadelo inimaginável.
Em momentos, a conceção do seu cosmos colapsa e o nosso anti-herói confronta-se com uma conjetura em que todos o odeiam e querem matar. De observações satíricas, Kurosawa faz nascer uma comédia tão negra como o breu e ainda para mais sedenta de sangue. Vira-se também o terror psicológico para a ação levada a píncaros de exagero e irracionalidade. Quando pensamos saber para onde a história de “Cloud” se dirige, ela troca-nos sempre as voltas. Que delícia e que espetáculo, que inferno e que paraíso de cinema inventivo. O Japão também se terá rendido à coisa, pois selecionaram a obra para representar o país nos Óscares. A escolha é meio doida do ponto de vista estratégico, mas há que admirar a audácia.
Demi Moore levou o TIFF à loucura.
Por fim, terminou o dia com o festim do terror na secção Midnight Madness. A fita que fez as honras foi “The Substance” de Coralie Fargeat, grande vencedor do prémio para Melhor Argumento em Cannes. Trata-se do pesadelo de uma Hollywood imaginada, quando uma estrela caída no esquecimento, na rejeição, decide arriscar tudo para uma nova chance. Quando o sistema rejeita as mulheres a partir de uma certa idade, mais vale tomar uma droga misteriosa e originar uma versão idealizada que nasce de dentro do corpo original como um parasita a rebentar com pele, osso, carne e músculo. Será que vale a pena todo esse sofrimento só para parecer mais jovem e bela?
Para a figura a que Demi Moore dá vida, a resposta é uma afirmação imediata. Mas estas tecnologias do além vêm com um preço e condições. Violas as regras e tornas-te no arquiteto da tua própria destruição. E afinal, quando nos sentimos melhor podemos ser tão cruéis para com o nosso “eu” passado. Esse “eu” menos bom, menos desejável, menos perfeito. Felizmente, o comum dos mortais não tem acesso às impossibilidades desta “Substance.” Os efeitos são verdadeiramente horripilantes, mas hilariantes também, uma negação tão forte dos bons costumes que se tornam em genialidade. Em Cannes fizeram-se muitas comparações a Cronenberg, mas Fargeat está é em continuidade de Brian Yuzna. É cinema para fazer rir, chorar e vomitar.
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