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PENÉLOPE | Entrevista a Patrícia Cairrão

Estivemos à conversa com Patrícia Cairrão, a atriz que dá vida a Penélope na nova produção da Associação Cultural RUGAS.

“PENÉLOPE” é a nova peça de teatro produzida pela Associação Cultural RUGAS, um espetáculo que aborda o tema da Guerra Colonial e a condição feminina no início do século XX. A dramatização acompanha a vida de uma mulher que vê partir o marido para os territórios de África, ficando com a sua vida em suspenso, numa espera que se prolonga por tempo indeterminado. “Adeus, até ao meu regresso” é o mote que marca o compasso deste espetáculo performativo.

Com estreia em outubro de 2021, “PENÉLOPE” regressa agora aos palcos do Centro Cultural Olga Cadaval em sequência da celebração dos 48 anos da Revolução dos Cravos. Para além da apresentação desta peça de teatro, dia 25 de abril haverá também uma conversa aberta ao público com Joana Pontes, também ela colaboradora na criação deste espetáculo. A acrescentar, estará patente no foyer do espaço cultural uma exposição com registos históricos que prometem apelar à memória de quem viveu neste período.

Teaser | PENÉLOPE

A criação deste espetáculo que cruza a arte performativa e o visual teve por base a pesquisa de milhares de documentos, bem como a análise de testemunhos pessoais e a consulta da obra “Sinais de Vida“, de Joana Pontes. Dito isto, a criação deste espetáculo de reflexão esteve a cargo de Ricardo Santos e Patrícia Cairrão, a atriz que dá vida a Penélope. Vejamos o que tem a dizer sobre a peça “PENÉLOPE”.

MHD: Como é que surgiu a ideia de criar esta peça?

Patrícia Cairrão: A Penélope nasceu de uma grande vontade que tínhamos de abordar este tema, porque quer o pai do Ricardo Santos (co-criador deste espetáculo), como o meu pai, são ex-combatentes. Tive a minha mãe à espera do meu pai, associada, assim, involutariamente a esta guerra. Houve muitas outras mulheres a serem influenciadas por este acontecimento da história portuguesa e, no fundo, nós acabamos por ser ‘filhos da madrugada’ e, por isso sentimos na pele todo o conhecimento desta história recente. Por isso mesmo, sentimos uma urgência em investigar estes testemunhos, de forma a podermos partilhá-las de forma criativa. Este projeto é muito mais do que uma peça, é um espetáculo performativo que também tem a parte de multimédia.

No fundo, a Penélope nasce pela necessidade de contribuir para a preservação da memória. Queremos dar voz a estas pessoas, muitas delas ainda vivas, que sofreram o trauma da separação, da impotência, da desilusão, do medo e da dúvida vinda de uma guerra que não era sua. Foram ‘vidas que ficaram em suspenso’ de homens e, sobretudo, de mulheres que tiveram de ficar cá à espera, com medo da morte. Este é um tema próximo e pessoal que é intríseco ao nosso processo enquanto artistas e ao processo artístico do RUGAS.

PENÉLOPE
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MHD: A Patrícia é quem interpreta esta personagem da Penélope. Qual é a sensação de interpretar uma história que, no fundo, também sua?

Patrícia Cairrão: Foi um processo muito rico. Senti que aprendi imensas coisas, mesmo a nível pessoal e familiar. Senti uma grande honra! É como se dentro de mim estivessem todas as mulheres em cena, as da minha vida e da minha história pessoal e familiar. Mas senti-me também a representar tantas outras mulheres de outras histórias que acabámos por ter conhecimento. Uma vez mais, o mundo encontra-se em guerra, como nunca deixou de estar e, mais uma vez, temos os homens a ficarem na guerra e a terem de ser as mulheres a partir e a ficar, de novo, em suspenso com vidas destruídas, em nome de outros interesses que se levantam.

MHD: Todo este espetáculo é um conjunto de testemunhos próximos e outros que foram recebendo. Como é que foi este processo de juntar esses testemunhos e cartas com o trabalho de Joana Pontes para criar a peça final?

Patrícia Cairrão: O processo de criação iniciou-se com a recolha e análise de cartas e de testemunhos reais através de entrevistas. O livro de Joana Pontes, “Sinais de Vida”, foi uma investigação que depois resultou numa tese de doutoramente e depois no livro, e que analisa milhares de cartas de guerra que foram trocadas durante o período da Guerra Colonial (1961-1974). O processo iniciou-se com essa recolha, com muita leitura e discussão. Após isso, houve uma seleção do material que considerámos mais relevante para a criação da peça, com temas sempre focados na mulher e nesta condição de espera. Por isso mesmo é que o título do espetáculo é “PENÉLOPE”, porque nos inspirámos nesta personagem da mitologia grega, que era a mulher de Ulisses, o herói grego, que esperou 20 anos pelo regresso dele quando este foi combater para a Guerra de Tróia. Portanto, a seleção foi sempre centrada na mulher e na espera por um regresso que não saberia se aconteceria.

Por outro lado, versamos sobre este contexto específico da história portuguesa que é a ditadura. Em Portugal, os direitos das mulheres eram muito poucos. Ao fim e ao cabo, para além de ter a vida em suspenso, a mulher não podia avançar com a vida porque precisava de autorização do marido para ter determinados documentos e executar certas ações. Pegando em todos estes dados, fomos construindo a vida ficcional desta ‘Penélope’, dissertando sobre qual seria o seu passado, qual a sua situação profissional e em que momento da vida dela se encontava no período da Guerra. A partir destas premissas fizemos um recorte de um período da sua vida. O espaço em si é o de uma casa, mas um espaço não convencional. Trata-se de uma divisão, de alguma forma híbrida, com uma janela para o mundo, na qual são projetadas, em multimédia, imagens do contexto histórico.

PENÉLOPE
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MHD: Uma vez que haverá uma sessão para as escolas, qual a importância de trazer o tema da Guerra Colonial para as gerações mais novas?

Patrícia Cairrão: É de enorme importância, porque ao termos abordado este tema da liberdade em outras criações, apercebemo-nos de que há uma grande falta de conhecimento sobre aquele período da nossa história recente. Sentimos uma grande falta de conhecimento da própria data do 25 de abril nas pessoas mais novas. Durante o processo, fizemos entrevistas a estudantes e muitos deles não sabiam explicar de uma forma mais pensada o que foi o 25 de abril e o que este representa para o povo português. Há aqui uma falência da memória porque nasceram noutra época. É como se fosse mais confortável apagar, de alguma forma, este período da nossa história e não falar dele.

MHD: Para terminar, o que é que o público pode esperar deste espetáculo?

Patrícia Cairrão: Isto das expectativas é sempre algo pessoal, mas aquilo que podemos apresentar ao público é este excerto da vida de uma mulher, que representa tantas outras, e que viu a sua vida condicionada por este acontecimento histórico e sociopolítico. Na verdade, não estando presas, estas mulheres acabavam por estarem presas a uma condição. O que mais podemos apresentar é o contexto histórico. No dia 25 de abril, no Centro Cultural Olga Cadaval, após o espetáculo teremos uma conversa aberta ao público com a investigadora e realizadora Joana Pontes, para falarmos sobre todos estes temas. Temos também uma exposição com registos históricos, sobretudo de espólios particulares. Em suma, podem esperar um projeto completo que nos leva numa viagem performativa e documental.

Aproveita a boleia de Penélope e embarca nesta viagem pela memória de um dos marcos mais importantes da história do nosso país!

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