MOTELx ’16 | Pet, em análise

Monstruosa feminilidade e privilégio masculino caracterizam Pet, um fascinante e frustrante novo filme de terror assinado pelo cineasta Carles Torrens.

pet motelx carles torrens

Seth é um homem “comum”, aquele tipo de protagonista folha em branco com que a audiência se pode facilmente identificar, com apenas algumas leves sombras de complexidade. Ele é introvertido, amistoso e tem uma grave falta de autoconfiança, aspetos da sua personalidade que se revelam problemáticos quando, por mero acaso, ele se cruza um dia com uma rapariga que ele em tempos conheceu no secundário. Ao contrário de Seth, Holly não se lembra de alguma vez se ter cruzado com ele e o nosso amistoso herói é rapidamente repudiado dos seus avanços românticos.

Mas, levando demasiado a peito os conselhos de um colega de trabalho, Seth decide mostrar-se um homem confiante e rapta o alvo dos seus afetos, esconde-a numa cave secreta por baixo do canil onde ele trabalha e aprisiona-a numa minúscula jaula semelhante às que, no andar de cima, prendem os cães. Como que numa tóxica visão de masculinidade a tomar controlo sobre a sua vida e da de Holly, Seth assume-se como uma figura salvadora que vai mudar a mulher que, aparentemente, é ainda mais monstruosa que o seu carcereiro.

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A misoginia da narrativa de Pet, o novo filme de Carles Torrens, é impossível de ignorar, vitimando uma mulher pelo simples facto de ser atraente e depois tornando-a num pesadelo psicopata como modo de oferecer uma justificação para o abuso que vai sofrendo. É claro que, para muitos, criticar um filme de terror, especialmente uma obra tão menor como esta, com base em valores morais e humanos poderá parecer algo um pouco despropositado. Afinal, o cinema de terror é o género desta arte, onde a misoginia mais se impõe como um aspeto constituinte do seu ADN, sendo que muitas das suas imagéticas clássicas envolvem violência contra mulheres ou outro tipo de obscena materialização de fantasias masculinas levadas ao seu extremo desumano.

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No entanto, mesmo que alguém tome essa posição amoral na apreciação de filmes de terror, Pet é uma obra que convida ao escrutínio dessas mesmas fórmulas sexistas. Seth, verdade seja dita, é sempre patético e o filme nunca nos pede para o olharmos através de um prisma mais glamouroso. Mas, como se o filme fosse uma materialização cinematográfica de uma secção de comentários do youtube ou do 9Gag, ele sente que tem o direito, como é geralmente simpático, de ter uma namorada. Esse tipo de privilégio masculino é usualmente atacado por alguma ou algum feminista ofendido e os bebés machistas nessas lutas dos comentários têm sempre uma resposta recorrente. Insultos, acusações de ser uma feminazi, generalizações monstruosas sobre todo o género feminino, etc. E não é que Holly é o tipo de demonização feminina que perfeitamente exemplifica esses pueris argumentos na defensiva? Com o seu corpo de barbie, olhos de Bambi e mente de Freddy Krueger, ela é o pesadelo perfeito de qualquer antifeminista com ideias de superioridade e privilégio baseado no sexo.

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Os atores ainda reforçam mais esta ideia. Dominic Monaghan, famoso por interpretar Merry na saga Senhor dos Anéis, expõe Seth em toda a sua glória patética e abusadora, mas nem o ator, nem o filme, alguma vez nos permitem estar na intimidade da sua personagem. Seth é, portanto, uma psicologia opaca no meio de um thriller psicológica. Em contraponto, Holly é uma pintura de psicoses e inúmeros detalhes de personagem. A sua caracterização, de forma geral, é simplista, mas a abordagem de Ksenia Solo e a insistência do argumento em nos colocar ao seu nível transformam esta vítima no ser humano mais bem definido do filme e na luz que ilumina e eleva todo o projeto à sua volta a um patamar de trash divertido e energético.

Toda esta interpretação de Pet como uma tentativa de subverter códigos de género da cultura atual e do cinema de terror poderá ser apenas mais um vácuo pretensiosismo crítico, mas existem três pistas no filme que indicam a possível validade desta teoria. Primeiro, temos a grande ênfase que é dada a fictícias redes sociais, como o PeepzFinder que é basicamente uma paródia do facebook, uma decisão que posiciona logo o tipo de pensamento sexista que reina sobre estas comunidades online como um elemento, nem que subliminal, do filme. E depois temos o artificialismo desenvergonhado que posiciona a narrativa numa realidade de clichés de filmes de terror e que em nada se assemelha ao mundo em que vivemos. Exemplos disso são a cave onde decorre quase todo o filme, a irracionalidade de quase todos os planos das personagens ou ainda o papel da única personagem afro-americana em todo o projeto. Em terceiro lugar, temos o final e sua derradeira celebração da triunfante Holly, subvertendo as regras deste tipo de narrativas, onde os grotescos femininos têm sempre de ser castigados.

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Com tudo isso dito, Pet é uma obra que afoga os rasgos de interesse e inteligência que contém com um mar de mediocridade espessa e impossível de ignorar. Essa mediocridade toma várias formas, como o ritmo a passo de caracol do primeiro ato da narrativa, os estúpidos momentos de “realismo” narrativo como uma inócua investigação policial, e a execução perfeitamente banal. Não se enganem, Pet é filmado e assemblado com aptitude e não há grandes mostras de incompetência formal, mas quase todas suas decisões, desde o uso do widescreen para salientar os vazios a envolverem as personagens solitárias até à maquilhagem dramaticamente esborratada de Holly.

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Ainda a acrescentar, está também, o facto de que, apesar de levantar todas essas fascinantes questões de género, Pet parece acovardado e demasiado seguro, nunca levando essa exploração aos extremos necessários para realmente chegarem a alguma conclusão ou experiência de valor. O potencial de grandeza torna todo o projeto num espetáculo de frustração para o espetador que não se deixe enfeitiçar pelos seus simples prazeres de trash cinema.

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O MELHOR: O desconforto absoluto que a clausura de Holly transmite. Ela nem se consegue levantar dentro da jaula, telegrafando uma visceralidade inquietante a todas as suas cenas enquanto prisioneira.

O PIOR: A já referida banalidade da execução formal é ainda mais triste que quaisquer questões de moralidade dúbia na narrativa e construção das personagens.


 

Título Original: Pet
Realizador:  Carles Torrens
Elenco: Dominic Monaghan, Ksenia Solo, Jennette McCurdy, Nathan Parsons
MOTELx | Terror, Drama, Thriller | 2016 | 90 min

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