10ª Festa do Cinema Italiano | Piuma, em análise

Depois de ter competido pelo Leão de Ouro no Festival de Veneza no ano passado, a hilariante comédia Piuma chega agora a salas portuguesas pela mão da 10ª Festa do Cinema Italiano.

piuma festa do cinema italiano

Pela sua natureza extremamente subjetiva, o humor é algo particularmente difícil de analisar de uma perspetiva crítica. Afinal, o que cada um de nós considera engraçado varia imenso de pessoa para pessoa. Há, por exemplo, quem se ria a bandeiras despregadas com as piadas sexuais de Salsicha Party mas que depois considere os filmes de Wes Anderson tão divertidos como um ataque cardíaco. Há quem adore comédia física ao estilo dos grandes clássicos do cinema mudo mas não aguente ser sujeito aos jogos verbais de Woody Allen. Enfim, é difícil agradar a todos.

Chamamos atenção a esta infeliz questão, pois há que se ter um gosto muito particular para se poder apreciar Piuma, o mais recente filme do realizador Roan Johnson que o ano passado foi considerado uma das seleções mais estranhas da competição principal do Festival de Veneza. Aliás, se alguém estiver interessado em perscrutar os confins da crítica cinematográfica internacional e sua cobertura desse festival, então ir-se-ão descobrir inúmeros textos que denigrem o filme pelo seu tipo de humor exagerado, uso de personagens caricaturadas, situações insólitas e gestualidade grotesca aplicada a um tema sério com conotações sociais que sugerem alguma ambivalência moral. Em suma, vão encontrar um queixume sem fim gerado pelo facto de que esta comédia italiana tem a ousadia de ser uma commedia all’italiana. Pior ainda, para muita gente, é que esta é uma commedia all’italiana centrada em adolescentes profundamente imaturos.

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Mais especificamente, Piuma conta a cómica história de uma gravidez adolescente. Cate e Ferro têm ambos 18 anos, vivem nos subúrbios de Roma e estão à espera de um bebé com que, no início do filme, eles planeiam ficar. As suas famílias, ao contrário dos jovens, não parecem nada felizes com a situação e apelos a aborto e adoção são repetidamente feitos, à medida que uma insana sequência de eventos vai tornando o casal ainda mais dependente dos pais de Ferro do que parecia antes possível. Como numa paródica sitcom televisiva, cada membro da família é definido principalmente por um modo emocional ou alguma característica divertida, como a irascibilidade do pai de Ferro ou o bizarro espírito boémio da sua prima fisioterapeuta.

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Em termos estruturais, o filme é partido em nove meses, cada um indicado com texto no ecrã a alertar o público para o início de um novo capítulo. Em termos formais, é um filme televisivo com ambições cinematográficas que foi filmado com uma horrível qualidade de imagem digital que consegue drenar a beleza do mais solarengo dos tableaux de comédia doméstica. Na verdade, contando mesmo com a eficiência cómica da montagem, somente o uso muito esporádico e muito mal integrado de uma fantasia pessoal dos protagonistas mostra algum género de ambição estética. Referimo-nos a duas imagens – a dos dois namorados a entrar dentro da escuridão de uma ecografia e a de os mesmos adolescentes a nadarem sobre os telhados de Roma, como se a cidade fosse somente a sua piscina pessoal.

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São ideias visuais que transbordam imaturidade juvenil como aliás todo o filme. Poderíamos mesmo apontar para essa imaturidade como um dos trunfos de Piuma que, graças a isso, consegue impor uma coesão tonal aos seus exageros que miraculosamente parece uma orgânica tradução da perspetiva dos dois protagonistas. Dois protagonistas que, há que se mencionar, oscilam entre a abjeta estupidez e ignorância de dois adolescentes metidos na maior alhada das suas vidas e entre serem duas pessoas perfeitamente cientes da sua parvoíce e imaturidade. Mesmo quando eles fazem decisões de vida que, para uma audiência cínica, podem ser encarados como os ditames forçados de um argumento formulaico, há uma noção de que eles se apercebem do risco que estão a tomar e da patetice das suas atitudes.

É essa linha de inesperada maturidade e autorreflexão que consegue dar ao filme uma relativa pátina de complexidade. Sejamos francos, Piuma é uma comédia muito superficial sem grandes ambições artísticas, mas isso não quer dizer que os seus cineastas não estejam interessados em propor uma experiência emocionalmente prazerosa e catártica ao seu público. Nesse sentido, os rasgos de maturidade e o subsequente florescer de genuína melancolia por entre as caricaturas simplistas do texto são um estupendo mecanismo de modulação tonal. Afinal, umas quantas lágrimas e instâncias de introspeção são ótimos acompanhantes para realçar a diversão de uma sobremesa cómica.

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Na sua maioria, os atores em cargo de darem vida a esta história fazem um bom trabalho, mesmo que, para muitas sensibilidades mais acostumadas ao pseudo naturalismo preferido pela maioria do cinema europeu, o seu exagero cómico seja difícil de engolir. O mais valioso elemento do elenco é, sem dúvida, o jovem Luigi Fedele como Ferro. Há uma leveza irónica no modo como este adolescente se vê a si mesmo e Fedele traduz isso de modo elegante mas divertido, deixando sempre espaço para instâncias de uma lacerante vulnerabilidade que, por segundos, nos mostram que esta personagem é muito mais humana do que uma simples caricatura unidimensional. Como Cate, Blu Yoshimi tem menos oportunidade para brilhar mas o seu desempenho consegue ser uma competente âncora que não permite que a audiência fique alienada pela loucura das outras personagens à sua volta.

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Ninguém questiona que Piuma está longe de ser uma obra-prima cinematográfica e que a sua natureza comercial e populista faz do filme um peculiar projeto para andar a fazer o circuito dos festivais. No entanto, o tipo de vitriole que tem sido lançado contra o filme, especialmente aquando da sua estreia em Veneza, é absurdo, injusto, e um notório indicador do tipo de atitude condescendente que muitas pessoas têm para com comédias. Não é por um filme ser um drama de prestígio que é melhor cinema que uma comédia que apenas quer fazer o seu público rir. Uma coisa é certa, apesar dos seus muitos defeitos e fragilidades, Piuma é muito menos tortuoso que certas mediocridades cheias de prestígio que, todos os anos, conquistam prémios tanto em festivais de cinema como na Awards Season americana.

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O MELHOR: A já elogiada prestação de Luigi Fedele. Mesmo quando as ações de Ferro são imperdoáveis, nunca o conseguimos descartar, ignorar ou odiar tal é o charme e qualidade presentes no trabalho do seu intérprete.

O PIOR: O modo como Piuma tende a dar muito mais valor e tempo de cena às perspetivas masculinas do seu elenco de coloridas personagens. Este desequilíbrio é especialmente notório entre Ferro e Cate, criando um enorme desequilíbrio dramático no centro da narrativa.



Título Original:
 Piuma
Realizador:
Roan Johnson
Elenco:
Luigi Fedele, Blu Yoshimi, Michela Cescon,  Sergio Pierattini,  Francesco Colella
Comédia, Drama | 2016 | 98 min

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