Que Horas Ela Volta? | Entrevista com a realizadora Anna Mulyaert

 

Apesar de estrear pouco cinema do Brasil em Portugal, a longa-metragem ‘Que Horas Ela Volta?, dirigida e escrita pela paulistana Anna Muylaert, (51 anos), é um dos melhores filmes brasileiros da actualidade e um retrato fiel das desigualdades e elitismo da sociedade brasileira, absolutamente a não perder.

 

Que Horas Ela Volta

 

‘Que Horas Ela Volta?’, é um filme que conta a história de Val (Regina Casé), uma ‘babá’, empregada doméstica interna que trabalha há vários anos na casa de uma família de classe média, do bairro do Morumbi em São Paulo. A vida de Val vai mudar com a chegada da sua filha Jessica (Camila Márdila), uma ‘vestibulanda’ (candidata à universidade), que lhe traz uma nova visão da vida e a espevita para outra realidade. O filme é protagonizado pela actriz brasileira que brilhou como ‘Tina Pepper’ na telenovela ‘Cambalacho’ da SIC e já foi premiado nos prestigiados festivais de Sundance e Berlim. Entretanto foi escolhido para disputar uma vaga nas nomeações de Melhor Filme Estrangeiro aos Óscares 2016. Em entrevista a cineasta Anna Muylaert partilhou-nos em Lisboa, as suas opiniões sobre o filme e a sua estreia em Portugal.

 

LÊ MAIS: Que Horas ela volta, em análise

 

MAGAZINE HD: O seu filme mostra uma realidade que tem a ver com as desigualdades sociais no Brasil, mas sempre num tom conciliatório, amável, sem grandes conflitos. Há até digamos quase um jogo de afectos. Porque optou por este registo?

ANNA MULYAERT: No Brasil é tudo muito misturado. Existe essa diferenciação de facto mas ao mesmo tempo, como se vê no filme o adolescente filho dos patrões vai dormir na cama da empregada interna. É como a questão racial: você nem pode dizer que ela exista realmente porque os negros nunca se manifestam, nunca aparecem para lutar pelos seus direitos. E o mesmo que acontece entre patrões e empregados, onde a relação chega a ser tão afectuosa, que se torna difícil para as empregadas domésticas internas compreenderam como estão a ser excluídas socialmente.

 

Vê trailer: https://www.youtube.com/watch?v=QtAsqNqZEIY

 

MHD: No inicio o filme era para se chamar ‘A Porta da Cozinha’, um título que marcava mais essa questão da diferenciação social. Porque optou por chamar-lhe ‘Que Horas Ela Volta?’

AM: As crianças dizem essa frase para a empregada: Que horas ela (a mãe) volta? E é  frase dita no filme pelo Fabinho, o filho dos patrões quando era pequeno. É provável que a Jessica, a filha da Val também tivesse dito o mesmo. O filme é desenvolvido a partir do ponto de vista da criança. Este jogo social, vai esbarrar na educação e na afectividade da criança, que está livre de uma qualquer intenção política, mas que acaba por sofrer essa influência da mesma maneira. Pensei várias vezes em trocar outra vez para ‘A Porta da Cozinha’, mas esse título só abarcava o lado mais político da história e o ‘Que Horas Ela Volta?’, têm outros aspectos…

 

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‘As crianças dizem essa frase para a empregada: a que horas ela (a mãe) volta?’

 

MHD: A realidade da ‘doméstica’ não é só comum à classe média e alta. Conheci no Brasil gente pobre que tem uma empregada doméstica interna, ainda mais pobre para tratar ou ajudar na casa e com os filhos? Isto também não terá a ver também com o facto de as mulheres querem uma certa independência do lar, numa sociedade que é apesar de tudo muito machista? Ou antes ter uma ‘doméstica’ é uma questão de estatuto?

AM: É um costume, é uma cultura. Não acho que seja uma questão de estatuto. É normal. Ninguém pára pensar nisso! Por isso o filme, questiona muito isso: é necessário todo o mundo ter uma empregada doméstica todos os dias? Que significa isso? As pessoas na verdade fazem isso sem pensar. O machismo é também muito profundo no Brasil. Quando o tema é casa e educação das crianças é assunto de mulher. Os homens estão fora.

 

MHD: No filme obviamente está lá a sua experiência pessoal. A Anna também deve ter ou até cresceu com uma ‘doméstica’ Inspirou-se nas suas ‘domésticas’, para construir o argumento?

AM: Tive uma ‘babá’, uma ‘doméstica’ quando era criança. Entrou para casa da minha mãe quando eu tinha sete anos. Ela é a musa da Val. De certo modo passei a personalidade dela para a Val. Agora tenho de facto uma empregada doméstica mas não dorme na minha casa. Quando os meus dois filhos nasceram não tive uma ‘babá’. Quis eu própria cuidar dos meus filhos. A partir do momento em que me separei e comecei a trabalhar fora, ou voltava para casa da minha mãe ou chamaria alguém para me ajudar. Então arranjei uma empregada doméstica, mas que não dorme lá em casa. Isto torna a relação bem diferente: uma relação de ajuda e não de reposição.

 

Que Horas Ela Volta

 

‘Tive uma ‘bábá’, uma ‘doméstica’ quando era criança. Entrou para casa da minha mãe quando eu tinha sete anos. Ela é a musa da Val’.

 

MHD: ‘Que Horas Ela Volta?’ reflecte igualmente o elitismo que existe em relação ao acesso à educação e a um certo conflito de gerações no Brasil? Um filho de uma ‘doméstica’ tem acesso a uma boa universidade ou a um bom curso superior?

AM: As universidades brasileiras são de facto muito elitistas. Há dez anos atrás não havia filhos de ‘domésticas’, nem negros nas universidades. Desde que o Lula subiu ao poder fez-se uma pequena guinada histórica: abriram-se quotas para os negros nas universidades, ajudas às famílias e bolsas de estudo. O Lula subiu a auto-estima do brasileiro de classe baixa e hoje as coisas estão bem diferentes. Quando eu inventei a Jessica ela era apenas uma hipótese. Ao ir hoje às universidades, para falar do meu filme, verifico que a Jessica passou a existir na realidade. Na FAU – Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (onde a Jessica se vai candidatar), dos 600 alunos que estavam presentes no debate cerca de 10, falaram e disseram: eu sou a Jessica, a minha mãe é empregada doméstica e sou a primeira geração que chegou à universidade, mas ainda quero trazer os meus primos. Portanto acho que o Brasil está neste aspecto ainda num momento de transição. É de facto uma pequena transformação, que há dez anos não existia.

 

MHD: Por outro lado a Jessica que já ganhou um certo estatuto educacional parece ter uma certa vergonha da mãe e integra-se melhor com os patrões. Isto porque a Jessica não foi praticamente criada pela mãe?

AM: Não concordo. Não acho que a Jessica tenha vergonha da mãe. Ela só não quer estar ali naquele papel da filha da empregada. Ela prefere ir para a periferia, viver numa pequena casa na favela. Ela até quer ficar em São Paulo só que a mãe não tem casa. De fato ela tem já alguma cultura, mas vergonha acho que não tem.

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‘Não acho que a Jessica tenha vergonha da mãe. Ela só não quer estar ali naquele papel da filha da empregada.’

 

MHD: No elenco conjuga a Regina Casé, uma atriz muito conhecida (inclusive em Portugal sobretudo na telenovela ‘Cambalacho’, da SIC), e uma estreante, a Camila Márdila. Elas não têm nada a ver fisicamente uma com a outra para fazerem de mãe e filha. No entanto, isso até acaba por funcionar muito bem no filme. Como chegou a estas duas actrizes?

AM: Sempre quis a Regina, porque é uma excelente actriz. Ela tem essa figura que é uma mistura de branca, índia e preta. Uma mistura de raças bem brasileira. A Camila foi descoberta através de testes. Inicialmente queria que ela fosse negra, mas não encontramos nenhuma actriz que se adequasse ao papel. Por isso optamos pela Camila Márdila. E ela tem alguma coisa na verdade que se parece com a Regina. Tem os dentes parecidos com os da Regina. Poderia ser perfeitamente uma sobrinha da Regina. Ela tem algo da família da Regina….

 

MHD: O filme foi acusado de propaganda ‘petista’. E que de alguma forma levou à aprovação de uma lei que defende os direitos das domésticas. Isto é verdade?

AM: Algumas pessoas falaram nesta questão, mas sinceramente não foram muitas. A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das Domésticas, nasceu por iniciativa do PT, e quase erradicou a empregada doméstica interna no Brasil. Há dez anos atrás, cerca de 22% das empregadas domésticas dormiam no emprego. Hoje em dia apenas 2% e isto por causa da PEC das Domésticas, que diz mais ou menos isto: se quer que a empregada durma na sua casa vai ter que lhe pagar as horas extraordinárias. A empregada pode dormir na sua casa, mas o horário de trabalho é de 8 horas diárias. E  isto tornou-se uma coisa para milionários. Hoje no Brasil quase nenhuma das empregadas domésticas dorme em casa dos patrões. O filme foi chamado de ‘petista’, por alguns de facto, mas eu não me importo. Eu não sou do Partido dos Trabalhadores (PT), mas na verdade o Lula fez uma coisa que vai ficar nos livros de História: abriu a porta para outra classe social ter acesso à educação. Isso é indesmentível! Você não tem de ser do PT, para dizer que isto é verdade.

 

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‘Hoje no Brasil quase nenhuma das empregadas domésticas dorme em casa dos patrões.’

 

MHD:Como correram as sessões que fez com empregadas domésticas?

AM: Foi muito bom e até queria ter feito mais. Foi muito difícil conseguir fazer essas sessões, porque o próprio sistema capitalista do cinema não tinha tanto interesse quanto eu em fazê-las. Algumas das empregadas domésticas, saíram da sessão (eu soube depois) e passaram a tarde a conversar e chorando, pois o filme funciona quase como se tudo aquilo que achavam que era humilhação e não tinham a certeza, acabava mesmo por ser uma humilhação. Então elas pareciam que estavam tirando de dentro de si coisas muito antigas. Isto segundo relatos que me contaram.

 

MHD: O filme para além ser o candidato brasileiro à pré-selecção aos Óscares, foi muito bem recebido em Sundance e Berlim. Como espera que venha a ser recebido aqui em Portugal?

AM: Realmente não sei. Acho que Portugal é uma cultura envolvida, porque nós sabemos que o que está ali no Brasil, de velho e a cair aos pedaços é uma herança da cultura colonial portuguesa. Portanto Portugal também está no filme ou pelo menos vestígios de  um certo Portugal. Não sei se vocês os portugueses que já viram o filme também sentem isso…?

 

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‘…o que está ali no Brasil, de velho e a cair aos pedaços é uma herança da cultura colonial portuguesa.’

 

MHD: Sim mas esta diferenciação e questão das oportunidades esbateu-se muito com o 25 de Abril..

AM: Não estava falando do Portugal de há 400 anos…do tempo da Corte Portuguesa no Brasil.

 

MHD: Para terminar viu o filme chileno ‘La Nana’, do Sebastián Silva e o documentário ‘Doméstica’, do Gabriel Mascaro? São filmes que tratam mais ou menos do mesmo tema…

AM: Não fui buscar referências a esses filmes. No filme do Gabriel Mascaro, até porque é um documentário, há uma das empregadas domésticas, que talvez tenha servido um pouco de referência para construir a figura da Val….mas diretamente não fiz destes filmes uma referência…O que mais me influenciou foi sem dúvida um filme argentino chamado ‘Cama Adentro’, do Jorge Gaggero, também sobre uma empregada doméstica; e ‘El Custódio’, outro filme argentino do Rodrigo Moreno, com a câmera sempre atrás de um segurança civil de um ministro. Este inspirou-me em alguns movimentos de câmera e planos, por vezes fora da acção principal; e claro ‘O Som ao Redor’, do Kleber Mendonça Filho, um dos melhores filmes brasileiros da actualidade.

 

ANNA MULYAERT: BIOFILMOGRAFIA

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Anna Muylaert nasceu em 1964. Depois de ter realizado algumas curtas-metragens, incluindo ‘A Origem dos Bebes Segundo Kiki Cavalcanti’ e ‘Rock Paulista’, trabalhou como crítica de cinema em jornais e revistas do Brasil como o Estado de São Paulo e Isto é. Participou na criação de séries e espectáculos para crianças como ‘Mundo da Lua’, ‘Castelo Ratinbum’, ‘O Menino’, ‘A Favela e as Tampas da Panela’, produzidos pela TV Cultura, ‘Disney Cruj’ da SBT e ‘Um Menino Muito Maluquinho’, da TV Brasil. Em 2002 realizou a sua primeira longa-metragem, ‘Durval Discos’, vencedora de sete prémios no Festival de Cinema de Gramado, incluindo o de Melhor Filme. Em 2009 realizou a sua segunda longa-metragem, ‘É Proibido Fumar’, que recebeu mais de 30 prémios nacionais, incluindo o de Melhor Filme no Festival de Cinema de Brasília, Grande Prémio da Academia de Brasileira de Cinema e Melhor Realização no Los Angeles Latino Film Festival. Colaborou no argumento das longas-metragens ‘Xingu’, ‘O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias’ e ‘Castelo Ratimbum’, dirigidos por Cao Hamburger, ‘Desmundo’, de Alain Fresnot, ‘Quanto Tempo Dura o Amor?’, de Roberto Moreira e ‘Praia do Futuro’, de Karim Ainouz. Colaborou ainda no argumento das séries de televisão ‘Filhos do Carnaval’ e ‘Alice’, para a HBO. Em 2010, realizou o telefilme ‘Para Aceitá-la, Continue na Linha’, para a TV Cultura, que deu origem à longa-metragem ‘Chamada a Cobrar’. Ainda para a TV Cultura, em 2012 realizou o telefilme ‘E Além de Tudo me Deixou Mudo o Violão’ e no mesmo ano realizou dois episódios da série ‘Preamar’, para a HBO. Em 2013 foi directora-geral da série ‘As Canalhas’ para o GNT.

 

JVM

 

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