"Indianara" | © Santaluz

Queer Lisboa ’19 | Indianara, em análise

O Queer Lisboa de 2019 abre com “Indianara”, um documentário brasileiro sobre a ativista pelos direitos de pessoas transgénero Indianara Siqueira.

“Indianara” começa com a morte. Ou melhor, o documentário realizado por Marcelo Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel começa no cemitério, com um funeral. Aí, onde só se veem cruzes espetadas na terra, onde um caixão barato é enterrado enquanto os amigos choram, onde todos são iguais, onde todos apodrecem e são lentamente reduzidos a pó. Assim nos lembra a figura titular de Indianara Siqueira que isso diz aos outros companheiros do luto. Tanta briga se faz sobre género, sobre identidade, sobre raça e sobre classe e, no fim, somos todos iguais. Todos apodrecemos.

As palavras são sentidas e uma marca do transtorno que vem com a perda. No entanto, o que trespassa esta mensagem é uma raiva ultrajada contra um mundo que se perde em ódios mesquinhos ao invés de virar os olhos para o que realmente importa em vida. Indianara luta para aniquilar tais barreiras, mas está longe de ser uma figura beatífica, pronta a dar outra face quando é agredida por aqueles que questionam o seu direito de existir. Ela está irada e, com este prólogo, o documentário que a retrata também convida o espectador a comungar nesta missa da indignação e da fúria.

indianara critica queer lisboa
© Santaluz

Para Indianara e tantos outros como ela, o mero ato de estar viva e manter o queixo erguido é um ato de revoltosa manifestação política. Há que recordar que, no ano passado, foram registados mais de 300 assassinatos motivados pelo ódio a pessoas pela sua orientação sexual ou identidade de género. Estar vivo é um ato político. Não esconder quem são é um ato político. Resistir às pressões de um mundo que os quer apagar é um ato político. O corpo é político e é difícil manter o coração a bater quando tantos querem o contrário. Tantos querem fingir que a diferença não existe ou que existe e deve ser punida, deve ser obliterada.

Nesta conjetura, em que viver é político, é fácil reduzirmos pessoas a slogans e movimentos ativistas, em desumanizar o indivíduo em prol da criação de divindades terrenas. Mais do que uma pessoa, Indianara Siqueira é um símbolo que transcende a pequenez do ser humano para muitos brasileiros que olham para ela e veem um ícone de uma luta necessária. No entanto, Indianara Sequeira não é esse símbolo para ela mesma. Indianara é uma pessoa e este documentário tanto tenta homenagear o ícone, como revelar a pessoa que existe por detrás dele.

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A Indianara que Barbosa e Chevalier-Beaumel nos mostram é ativista, sim. De facto, algumas das sequências mais elétricas do filme encontram-na de microfone ou altifalante na mão e a espalhar a palavra na praça pública. Os cineastas vão além disso e mostram-nos a mulher, mostram-nos uma amiga, uma esposa, uma figura materna, uma dona de casa e, sim, mostram-nos o ícone. Tudo é parte deste retrato multifacetado que, pelo caminho, nos vai também delineando uma visão de um Brasil em crise, mesmo dentro de espaços seguros e círculos sociais progressistas. Não é por acaso que todo o filme parece perder gás e deixar-se cair num estado de melancolia corrosiva quando chega ao assassinato de Marielle Franco.

Essa cena e as muitas sequências de manifestação política dão fúria e fogo e muitas lágrimas a “Indianara”, mas os cineastas sabem compensar isso com gestos de júbilo e pequenas joias de felicidade quotidiana. Não só o documentário é multifacetado ao nível do seu retrato central, como também o é ao nível de tom e negociação emocional. No que se refere a tais aspetos, muitos aplausos têm que se dar aos momentos passados em volta de uma piscina, um pequeno oásis sem ódio, onde corpos se expõem sem vergonha e todos sentem um à vontade que quase se reflete no próprio espectador.

indianara critica queer lisboa
© Santaluz

Essas cenas com água e risadas, com corpos seminus e galinhas a correr no quintal também nos mostram uma riqueza estética que não existe noutras passagens mais solenes. Aí a câmara move-se livremente e voa por telhados e jardins esquálidos, persegue pássaros curiosos e celebra corpos cuja beleza foge à norma, mas não deixa de ser beleza. Infelizmente, o resto de “Indianara”, o filme, não exibe assim tantos momentos de inspiração audiovisual. Com muita pena, temos de admitir que o documentário é bastante convencional na sua imagética e abordagem, em nada se equiparando à qualidade transgressiva e lutadora da sua protagonista. Além disso, há uma relativa amorfia estrutural que tira poder a este retrato.

Dito isto, “Indianara” sofre de convencionalismos e má estruturação, mas está em boa companhia. Muitos são os grandes documentários que pecam pela falta de originalidade formal e este género de retrato do indivíduo é particularmente afetado por tais fragilidades. Considerando que este particular projeto engloba dois anos de filmagens, a sua estrutura fragilizada também é entendível, se não desculpável. Fora do Brasil, esta é uma boa introdução a Indianara, que não glorifica ou beatifica, que não ofende, mas também não transcende. Para um público mais familiar com o trabalho e fama da ativista, será uma boa oportunidade para ver a mulher que existe além do discurso político e dos protestos na rua.

Indianara, em análise
indianara critica queer lisboa

Movie title: Indianara

Date published: 20 de September de 2019

Director(s): Marcelo Barbosa, Aude Chevalier-Beaumel

Genre: Documentário, 2019, 84 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

“Indianara” é um valioso gesto de ativismo político e indignação cinematográfica para abrir o Queer Lisboa em grande. Não se trata de um documentário perfeito, mas é um justo retrato de Indianara Siqueira, mostrando suas contradições e maravilhas em igual proporção.

O MELHOR: A sequência da piscina e o aniversário de Indianara, celebrado nas ruas e com ativismo político contra um Brasil que se afunda num oceano de insanidade, de ódio e de intolerância.

O PIOR: A estrutura meio amorfa que resulta muito de questões de timing das rodagens, mas também é um dano colateral da própria falta de estrutura dramatúrgica da vida real.

CA

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