Diamantino

Queer Lisboa ’18 | Diamantino, em análise

Diamantino”, que venceu o prémio máximo na prestigiada Semana dos Realizadores do Festival de Cannes, chega agora a Portugal numa antestreia absolutamente esgotada que abriu o 22º Queer Lisboa.

No final do século passado, aquando do quingentésimo aniversário da chegada de Cristóvão Colombo às Américas, muitos foram os académicos que se propuseram a dissecar o legado histórico da época conhecida como as “descobertas”. Essa mesma denominação foi posta em causa, representando uma caracterização errónea do processo de expansão marítima dos impérios ibéricos. Afinal, essas terras “descobertas” já tinham população local, já tinham civilização e História, economia e legado, pois nada disso necessita do toque de um reino hegemónico europeu para existir. A “descoberta” é o nome com que glorificamos a ação colonialista de Portugal nessa era distante em que, apesar da sua pequenez geográfica, a nação de Camões reclamava metade do mundo como sua propriedade.

Em muitos países europeus, floresce atualmente uma nostalgia imperialista associada a movimentos conservadores. Em Portugal podemos não ter casos tão flagrantes deste fenómeno como no Reino Unido, mas isso não significa que a nossa História e iconografia cultural não estejam repletas de instâncias em que idolatramos figuras defensoras do domínio demagogo e exploração de recursos naturais e humanos de nações não europeias. Veja-se a figura de D. Sebastião, tão mitificada e tida como um símbolo de glórias passadas e muito desejada salvação nacional. Esse monarca juvenil que um dia aparecerá numa manhã de nevoeiro estava longe de ser um herói, tendo desaparecido numa batalha à conquista de territórios no Norte de África. No entanto, o advento do domínio filipino elevou o seu legado e, ainda hoje, a história é uma tragédia e não simplesmente um conto de absurda hubris. Talvez se os seus inimigos não tivessem sido “mouros”, a História pintaria a situação de modo diferente.

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Feliz é a nação que se ri dos seus heróis.

Em “Diamantino”, o filme português de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt que encantou na Semana da Crítica em Cannes, o legado de tal História imperialista e seu papel na imagem que Portugal tem de si mesmo é maravilhosamente analisada por meio de pura absurdez. Esta é uma comédia meio surreal em que, a certa altura, um jogador de futebol desgraçado participa nas filmagens de um spot para uma campanha a apoiar uma iniciativa facilmente caracterizada como Brexit lusitano. Nessas filmagens, os protofascistas portugueses vestem o seu protagonista como D. Sebastião e põem-no a matar “mouros” como um destemido herói de matiné à la Errol Flynn. É impossível não nos rirmos de quão ridículas as imagens são, mas o seu conteúdo é simplesmente uma variação refletida da nossa mesma cultura nacional, contendo uma necessária crítica por entre sua comédia extravagante.

D. Sebastião está longe de ser o único herói português que Abrantes e Schmidt desmistificam com humor cartoonesco e uma estética kitsch que lembra tanto cinema de género italiano como a oeuvre de John Waters. O futebolista tornado ator no centro dessa propaganda é Diamantino Matamouros (o filme tem muitas mais-valias, mas subtileza não é uma delas), uma extremosa paródia de Cristiano Ronaldo que, no panorama atual, talvez seja o que de mais perto temos de um herói nacional elevado ao estatuto de mito vivo. Dotado de um exagerado e inconsistente sotaque das ilhas, que o seu pai notoriamente não partilha, e abençoado com uma inocência infantil, Diamantino é uma figura naïf de estranho carisma, quase um Forrest Gump português que, ao invés dessa personagem de Tom Hanks, não é apresentado como uma odiosa defesa de passividade política.

Esta é a história de Diamantino que vê cachorrinhos gigantes quando vai rematar até ser transtornado pela crise de refugiados e assim falhar um golo crítico na final do Mundial. Rejeitado pelo público, Diamantino, cujo pai solteiro morreu no momento do fracasso futebolístico do filho, decide que quer adotar um refugiado. Suas irmãs gémeas e habituais abusadoras não aprovam a ideia, mas lá chega ao palacete da família Matamouros um rapaz moçambicano chamado Rahim. É claro que nem tudo é o que parece e Rahim é, na verdade, Aisha, uma agente secreta/fiscal dos impostos/polícia infiltrada cabo verdiana decidida a investigar os crimes financeiros do ídolo português. Junta-se a esta intriga uma amante lésbica disfarçada de freira, um gatinho adorável, hermafroditismo causado pelos genes de peixes palhaços e um esquema nacionalista para clonar Diamantino de modo a distrair o povo português com futebol e fazer Portugal grande de novo e temos o enredo meio esquizofrénico de “Diamantino”.

Para os críticos internacionais que têm muito celebrado esta comédia portuguesa, é precisamente a insanidade da narrativa que tem sido o foco, mas convém dizer que o filme tem muito valor para além disso. Sua desmitificação de ícones nacionais já foi amplamente referida aqui, por exemplo. Também fantástica é a proposta tonal do filme, que consegue sugerir a comédia absurdista sem alienar o espectador. Muito do mérito, no que se refere a tal equilíbrio tonal, cai sobre os pés do elenco que tem de manejar as caricaturas deliberadamente unidimensionais do guião sem trair suas sensibilidades cartoonistas. Como as gémeas pérfidas, Anabela e Margarida Moreira. são quem vai mais longe no registo exagerado do filme, mas são Carloto Cotta e Cleo Tavares, nos papéis de Diamantino e Aisha, quem ancora o projeto num semblante de realidade humana.

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A arma secreta do filme é o seu elenco.

Nas mãos de Cotta, Diamantino é deliciosamente ingénuo, mas também estranhamente carismático. Ele é uma caricatura, mas preocupamo-nos com o seu fado pelo fim da história e, quando o futebolista é confrontado com desejos inesperados e o aparecimento de um par de seios femininos no seu corpo, Cotta telegrafa como a inocência de Diamantino o deixa aberto a encontrar felicidade em situações que poderiam representar intransponíveis transgressões morais. Por seu lado, é em Tavares que o filme tem o seu elemento mais reconhecivelmente humano e é pelas suas reações e cintilante riso que o espectador vai aceitando o universo absurdista de “Diamantino”. Mais importante ainda é como, através de Tavares o espectador é convidado a apaixonar-se pela figura do futebolista, não como herói nacional, mas como um homem que parece a antropomorfização de um cãozinho amoroso cuja única preocupação é mostrar quanto amor tem para dar.

O filme não é isento de fragilidades, há que dizer. Em relação à construção formal, por exemplo, o equilíbrio que existe no balanço tonal da narrativa nunca se regista a nível estético. Por um lado, “Diamantino” é filmado com película rica em grão e generosas doses de câmara ao ombro. Isso resulta numa imagem em constante e muito irritante oscilação que parece querer sugerir um realismo completamente incompatível com a narrativa, o trabalho dos atores e o próprio design. A montagem não ajuda, obliterando a legibilidade espacial de todas as cenas com obstinada eficácia. Por outro lado, “Diamantino” é também um filme em constante perigo de cair num registo demasiado didático, especialmente no seu uso de versões portuguesas da retórica do Brexit e de Donald Trump. O que salva “Diamantino” de tais problemas é a sua atitude bonacheirona e gozona, um antídoto a qualquer tipo de seriedade didática e brilhante catalisador de prazer cinematográfico. Este é o tipo de filme ao qual é difícil resistir, por muito cínicos que possamos ser, tal é o charme da sua sincera patetice.

Diamantino, em análise
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Movie title: Diamantino

Date published: 15 de September de 2018

Director(s): Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt

Actor(s): Carloto Cotta, Cleo Tavares, Anabela Moreira, Margarida Moreira, Maria Leite, Carla Maciel, Chico Chapas, Joana Barrios

Genre: Comédia, Drama, Fantasia, 2018, 92 min

  • Cláudio Alves - 85
  • José Vieira Mendes - 80
  • Maggie Silva - 88
84

CONCLUSÃO

“Diamantino” é uma deliciosa caricatura de um Portugal protofascista em que o futebol é o ópio do povo e o herói nacional vê cachorrinhos gigantes quando está em campo. Entre propostas kitsch, meio surreais e completamente absurdas, o filme tece uma fascinante dissecação de iconografia nacional e até do legado histórico português, encontrando júbilo na demolição de ícones imperialistas e na transgressão de morais sexuais conservadoras. Um elenco bem afinado segundo as exigências tonais do projeto é a arma secreta de “Diamantino”.

O MELHOR: Os cachorrinhos gigantes são o efeito especial menos “credível” e mais delicioso de todo o ano cinematográfico.

O PIOR: A câmara ao ombro e montagem displicente que roubam ritmos cómicos ao filme e contribuem para um instável cocktail estético que nem sempre beneficia “Diamantino”.

CA

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